14.11.17

A triste história de um posterior da coxa apodrecido

Meu treinador, Alexandre Blass, não poucas vezes reclama de que, quando eu conto histórias de minhas corridas ou faço alguma transmissão de vídeo, falo de como foi difícil tal ou qual treino ou de como sofri com isso ou aquilo ou de como surgiram tais ou quais dores ou de como enfrentei essa ou aquela lesão oportunista, as malditas “ites” com que os corredores convivemos. O problema é que isso acontece, muitos menos vezes do que parece, mas, quando acontece, é traumático, doloroso e merece registro.
Vai daí peço vênia para compartilhar convosco a mais recente e insuportável dor que me acomete, tentando ameaçar a minha reta de chegada, logo agora, quando estou a poucos quilômetros de completar o meu desafio de sessentão, que é totalizar, ao longo deste ano, distância equivalente à de sessenta maratonas.
Pode deixar que eu faço a conta: 60 vezes 42,2 quilômetros resultam em 2.532 quilômetros. Se conseguir, será para mim recorde mundial pessoal interplanetário e intergaláxico de várias gerações. Como disse em meu primeiro livro de corridas, o “MARATONANDO”, venho de uma estirpe de sedentários, gloriosa linhagem de gente especializada em viver a vida como podia sem fazer grandes marolas e sem inventar correrias.
Hoje de manhã faltavam menos de noventa quilômetros para eu atingir a meta. Saí para o treino, portanto, entusiasmado com a perspectiva de chegar mais perto de meu objetivo. E a manhã estava gloriosa, com os termômetros da rua marcando, às 6h30, meros 16 graus. Dia especial para correr.
E me fui! Aproveitando o clima, tratei de fazer blocos de três quilômetros, combinando 2.700 metros correndo e 300 metros caminhando. É uma forma preconizada pelo já citado Alexandre Blass para reduzir riscos de lesões ao mesmo tempo em que proporciona a possibilidade de treinos mais longos ou mais intensos (em blocos mais curtos).
Está dando certo. Neste ano não tive nenhuma lesão importante, apesar do, para meus padrões, alto volume realizado. E houve intensidade também: no final de maio e início de junho, corri três meias maratonas em três finais de semana seguidos.
Mas dores senti e sinto. Hoje, por exemplo, do nada, me agulhou o posterior da coxa direita. Não me lembro de ter feito nenhum movimento brusco, aberto a passada, acelerado ou reduzido de sopetão. Nada. Mesmo assim,  quando passava um pouco dos sete quilômetros de jornada e eu já estava perto dos portões da Cidade Universitária, a perna gemeu, a coxa estrilou: o velho aqui mancou.
Fiz o que faço sempre quando surge alguma dor durante a corrida. Primeiro, paro, penso, sinto, tento identificar o que aconteceu e avaliar o risco de continuar. Em geral, como fiz hoje, sigo caminhando por algumas centenas de metros e depois tento correr.
Cada passo foi sofrido, mas possível. Inteirei oito quilômetros, o que é melhor do que nada, já dentro do território uspiano. Confiando no descanso, tentei correr. DOR! Então abortei o treino e peguei um ônibus para voltar e fazer o tratamento doméstico mais imediato.
O que fiz foi aplicar uma bolsa de gelo na área dolorida, ficando ali por quinze minutos. O objetivo é reduzir a inflamação, e isso precisa ser feito o quanto antes. Já tinha se passado mais de uma hora da lesão, mas taquei gelo assim mesmo. Depois, apliquei bolsa de água quente, para relaxar a musculatura. Vamos ver o que acontece.
Enquanto isso, vou contando histórias. O caso do posterior da coxa podre foi o mote da transmissão que fiz ao vivo na manhã de hoje, que você pode assistir CLICANDO AQUI.


Além de contar minha história triste, comentei noticiário quentinho, que li hoje no “The New York Times”. Trata-se de uma nova recomendação dos principais corpos médicos dos Estados Unidos na área de cardiologia. Depois de analisar avaliações de milhares de estudos de caso, eles decidiram modificar o critério de definição de pressão alta.
Até ontem nos EUA, pressão de 14 por nove era considerada saudável, normal, “boa”. A partir de hoje, com a mudança de critérios, o máximo para “passar” no exame de saúde é 13 por nove. 
Isso significa que um batalhão de norte-americanos que eram considerados saudáveis passam a estar inscritos entre os que sofrem de pressão alta: em números absolutos, a população hipertensa passa de 72 milhões de adultos até 45 anos para 103 milhões.
Nem todos vão precisar receber remédios; para a imensa maioria dos novos hipertensos ajustes no estilo de vida devem bastar. A receita é conhecida: alimentação saudável e exercício físico. 
E é bom que apostem e insistam nessa linha porque o tratamento medicamentoso também tem riscos, especialmente de atingir os rins. Quer dizer: a pessoa fica bem do coração, mas tem aumento de riscos de problemas renais.
Essa preocupação toda das associações médicas se justifica porque a pressão alta é o segundo maior fator de risco para ataques cardíacos –o primeiro é o fumo. E problemas cardiológicos são a principal causa de morte nos Estados Unidos.
Vamos ver se funciona.
Mudando de saco para mala: no vídeo também comentei a camiseta de corrida que usei no meu treino de hoje. É uma velhinha, que ganhei no final da década passada quando participei da Meia Maratona de Lima, que é tida como a corrida mais antiga da América Latina –nas Américas, perde apenas para a Maratona de Boston.


Eu tive a satisfação de participar, em 2009, da edição número 100 daquela corrida. E escrevi no meu blog, que na época era hospedado no braço internético da “Folha de S. Paulo”: “Pela primeira vez, corri no exterior uma prova mais velha do que eu”.
A corrida foi muito bacana e, para não perder a viagem, copio a seguir o texto que publiquei então (setembro de 2009) no blog +Corrida, precursor deste Blog do Lucena.


Pela primeira vez, corri no exterior uma prova mais velha do que eu. Foi a Meia Maratona de Lima, que no domingo passado teve sua centésima gloriosa edição, cheia de festa, alegria e orgulho. Totalmente merecido, pois é, ao que eu saiba, a corrida de rua mais antiga da América Latina, perdendo, em todo o continente, apenas para a Maratona de Boston.
Com todo esse verniz histórico, nenhum lugar melhor para a largada que a Plaza de Armas, o terreno que o conquistador espanhol Francisco Pizarro marcou como pedra fundamental da Ciudad de los Reyes, em 1535, e também o palco escolhido pelo libertador José de San Martín para proclamar a independência do Peru em 1821.
No clima passadista, foram contratados alguns atores que, vestidos ao estilo de diferentes épocas, se transformaram na marca da prova: estavam na página de abertura do site oficial, nos cartazes, nas propaganda e na largada, ao vivo em em cores, com suas camisetas anos 40 e seus borzeguins mais antigos ainda. Viraram uma atração na praça, e muita gente tirou foto com o grupo de viajantes no tempo.
Mas era hora de viajar no asfalto. Com a sirene anunciando a largada, caiu sobre os corredores uma chuva de papel picado, vermelho com as camisetas que todos usávamos. 
Saímos a passo, depois a trote, pelas ruas estreitas do centro velho de Lima, proclamado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, construções históricas que é. Logo nos primeiros metros, passamos pela catedral de Lima, dos idos de 1600 e vemos também o Palácio do Governo nacional; saindo da Plaza de Armas, damos de cara com um predião imponente, com nome estranho, Estación de Desamparados, que foi assim nomeada porque antigamente havia uma igreja de Nossa Senhora de los Desamparados ao lado da ferroviária.
Ali foi também o primeiro ponto em que um grupo musical alegrou os corredores. Dançavam, cantavam, faziam música, numa prévia do que estava para vir. Mas, para se divertir, era preciso também prestar atenção no caminho: as ruas históricas são estreitas, e o percurso dobra esquinas sem conta nessa primeira etapa, passando por diversos tipos de calçamento.

De qualquer forma, mesmo essas artérias multicentenárias não são tão estreitas como as vielas por onde passei, logo ao chegar a Lima. É que o aeroporto fica em Callao, um dos mais antigos e populosos distritos da cidade _Lima é um aglomerado de 43 distritos, cada um com seu prefeito, e todos gerenciados pela Municipalidad Metropolitana de Lima. Para sair de lá, passa-se por ruas, ruelas e ruelinhas, dependendo do seu destino; dá também para seguir por algumas avenidas, mas, mesmo assim, são caminhos supermovimentados, com trânsito lento e pesado (será que não lembra uma certa cidade do Brasil?).
Era para Callao, aliás, que seguia a corrida em seus primórdios. Na sua primeira edição, a prova ficou conhecida como Lima/Callao de Fiestas Patrias. Aquela região hoje é dominada por construções pobres, prédios de tijolo sem reboco, tal como em muitos bairro brasileiros. Lima, com cerca de 8,5 milhões de habitantes, é uma cidade pobre, mesmo comparada aos pobres padrões brasileiros.
Os corredores, porém, não veem nada disso. O percurso segue passando por prédios opulentos, praças bem cuidadas, parques bonitos. Em vários pontos, a população e concentra e aplaude os corredores. E as bandas enchem de som a manhã de domingo, fazendo cada um apressar seu ritmo, alegrar-se correndo.
Há de tudo: em um ponto, palhaços e acrobatas em pernas de pau; em outro, cantores vestidos ao estilo dos anos 80; num terceiro, somos recebidos por Elvis e Marilyn; sem falar na percussão nativa e nos tambores índios que fazem dançar até um sujeito de cintura dura como este vosso escriba.

Tudo muda quando entramos na avenida Arequipa, que corta vários distritos, chegando quase ao mar. É uma avenida larga, muito bem arborizada, com vasto canteiro central que convida a caminhadas, corridas ou a um namorico gostoso numa sombra de árvore. É um convite para correr, acelerar, fazer o coração bater mais forte.
Com rapidez, passamos pelos prédios modernos de San Isidro, e nos encaminhamos para o mar. Mas não vamos chegar à praia, uma das grandes surpresas que tive nessa viagem. Lima é à beira-mar, mas o mar fica distante de Lima: a cidade está construída sobre um imenso planalto, que desaba em precipício quando chega ao mar. Uma via expressa separa o rochedo da praia, que é cinzenta, cheia de pedregulhos e seixos, inóspita, parecendo dizer: "Não venha cá". Os surfistas vão, mas não vi banhistas por lá...
Pouco depois de ver o mar, vejo também a primeira falha da organização: o posto de hidratação do km 12 está seco. Quem vai a ritmo de 6min/km, mais ou menos, fica sem água nem isotônico, que vinham sendo servidos aos baldes nos postos anteriores.
Não me preocupei, porque o clima estava ameno e eu tinha aproveitado bem a fartura anterior, mas vários companheiros de ritmo ficaram passados _ao cruzar por uma garota, ouvi de revesgueio sua conversa no celular, em que pedia a alguém para comprar isotônico com urgência... No km 15, a falha se repetiu, e houve gente que parou em uma banquinha, pouco depois do km 16, para comprar água.

Eu estava mais de sangue doce, procurando aproveitar o cenário, desfrutar das novidades que Lima oferecia. O domingo era também data nacional, dia de Santa Rosa de Lima, padroeira do religioso país e de sua polícia. Ao longo de toda a avenida Arequipa, via grupos de jovens vestidos a caráter. Iam dançar, cantar ou fazer peças musicais em festas escolares, além de apresentações na rua mesmo, que virou um grande palco.
Além deles, os corredores também éramos protagonistas no asfalto, cada vez mais próximos do gran finale. No km 18, a ordem se restabeleceu, com muita fartura de bebida, além de bananas descascadas, prontas para serem consumidas e virarem combustível para a arrancada decisiva.
E assim fiz, acelerando para a chegada no Circuito Magico de Agua, um grande e superbem cuidado parque que tira seu monte do grande número de fontes que ostenta, cada uma com desenho diferente, chafariz esplendoroso e trilha sonora especial.
Ainda parei para fotografar corredores passando por um desses jorros d’água, e depois fui apertei o passo o suficiente para ter pernas e correr legal na reta de chegada, fazendo ultrapassagens de última hora e cruzando a linha em estado de glória.
....
Bom, essa foi a história de minha participação na centésima edição da Media Maratón de Lima, em 2009. 
Hoje a minha situação está muito diferente, com o maldito posterior da coxa apodrecido. Acabei de me levantar um pouquinho, e até caminhar beeem devagar está difícil.
É o chamado "desgaste de material". Tomara que o descanso seja suficiente para me devolver ao asfalto, pois ainda faltam oitenta e dois quilômetros para atingir meu objetivo.
Torçamos juntos.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de 14 de novembro de 2017


8,11 quilômetros percorridos em 1h17min53

Acumulado no projeto 60M60A
2.450,80 quilômetros realizados em 435h




7.11.17

“Marighella queria que o povo fosse feliz”, diz viúva do líder comunista

“Ele queria que o povo fosse feliz. Ele lutou para isso”, diz Clara Charf, do alto de seus 92 anos de vida de “guerreira pela paz, pela justiça e pela liberdade”, como foi chamada em uma das tantas homenagens que recebeu nos últimos anos. Colher o depoimento da viúva de Carlos Marighella foi o momento mais emocionante de minha jornada desta última segunda-feira, em que corri em memória do grande líder comunista.


A breve conversa com Charf, que já foi chamada de “Viúva Vermelha” aconteceu pouco depois do encerramento da tradicional homenagem a Marighella feita a cada quatro de novembro, aniversário de sua morte, na alameda Casa Branca, local em que foi assassinado em São Paulo há 48 anos. 
Neste ano, a celebração passou para o dia seis e reuniu algumas dezenas de pessoas, de tarimbados militantes de cabelos brancos e cicatrizes de torturas a jovens entusiasmados pela luta pela democracia, por um Brasil livre e soberana.
Para lá, a arborizada e sofisticada rua dos Jardins, que dirigi o percurso de minha Corrida Carlos Marighella. É o jeito que tenho de homenagear os que deram a vida por nós, agradecer ao amor sem peias dos revolucionários –“Não há amor maior do que dar a vida pelo seu irmão”. Neste ano, já corri por Ísis de Oliveira, por Carlos Lamarca e pelos trabalhadores que fizeram, em 1917, aqui em São Paulo, a primeira greve geral da história do Brasil.
Depois de alguns quilômetros, cheguei ao primeiro marco das lembranças de Marighella, o encontro da avenida Rebouças com as ruas Capote Valente e Oscar Freire. Ele esteve ali na tarde de três de novembro de 1969, véspera de sua morte, sem saber que naquelas mesmas horas estavam sendo torturados os frades com quem deveria se encontrar no dia seguinte.
Das cinco e meia da tarde às oito da noite circulou por ali, usando uma peruca como disfarce, segundo conta o repórter Mário Magalhães na monumental biografia “Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”. Como planejado, encontrou-se com vários militantes. A um deles, Gilney Viana, confidenciou: “Nós estamos com problemas”.
Mal sabia ele que o torniquete já se fechava, cevado com sangue. Apesar de consciente do cerco, talvez imaginasse ser possível escapar –afinal, não seria a primeira vez.


Em 1964, poucos meses depois da sua espetacular prisão, foi entregue de novo à liberdade graça a um habeas corpus impetrado pelo grande jurista Sobral Pinto. Detido que estava no DOPS de São Paulo, por aqui mesmo encontrou abrigo para recompor o corpo das durezas da prisão.
Ficou hospedado na avenida Angélica, esquina com a rua Coronel José Eusébio, segundo marco de meu percurso, organizado com a preciosa ajuda do já citado Mário Magalhães, a quem agradeço a colaboração. Do quartinho dos fundos do apartamento no décimo andar, Marighella tinha por vista o arvoredo e as tumbas do cemitério da Consolação, inspiração para um de seus poemas, que reproduzo a seguir.

VISÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO AMANHECENDO
SOBRE O CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO

Ah! São Paulo Gigante!
Monstro-cidade amanhecendo,
estruturas inacabadas,
esqueletos, edifícios imensos, erguidos
desengonçados
como braços clamando.
Enormes caixas descomunais
recobertas de lençóis brancos da névoa da manhã
--fantasmas espiando este cemitério.
Esta quadra estendida
entre casas e ruas que já despontam para o trabalho,
criptas, mausoléus, monumentos
e cruzes,
cedros e ciprestes,
espectros, sombras, paisagem funérea
--o cemitério que eu vejo de cima deste apartamento
na fria manhã da Paulicéia.
Túmulos sem fim,
alinhados em quadra,
a visão impressionante
do branco das tumbas
em contraste com o verde dos cedros e ciprestes.
Sepulcros recobertos de geada,
a visão espantosa de um cerco hediondo
de gorilas,
aos milhares,
os braços em torno da morada dos mortos,
gorilas raivosos na sua nudez,
almas penas espantando a metrópole-proletária,
trogloditas tentando parar o progresso...

Anos mais tarde, Marighella voltaria à mesma avenida Angélica, uma dúzia de quarteirões abaixo, para comandar o assalto à agência do banco Leme Ferreira que fica na esquina com a alameda Barros, terceiro ponto de meu percurso. A ação de desapropriação aconteceu assim, conforme relato no livro de Mário Magalhães:

“Pouco depois do meio-dia de 1º de julho de 1968, três homens circulavam pela rampa do conjunto comercial onde se situava o Leme Ferreira. Marighella vestia terno azul-marinho e carregava um revólver 38, como o de Elinho, que se disfarçava com óculos escuros e boné.
De japona escura, Marquito segurava um saco xadrez recheado com uma metralhadora. Antônio Flávio se certificou dentro do banco de que o numerário chegara, saiu, informou a Marighella e se foi a pé. Feito um bandido sinistro, Marighella entrou ao lado de Elinho, ergueu o braço com a arma e engrossou a voz, bem no instante em que Marquito desembrulhou a metralhadora e se juntou à dupla: “Isto é um assalto! Todos de mãos para cima!”
Os quatro presentes se apavoraram quando Marighella ameaçou: “Quem sair leva bala!”
Elinho ordenou que as pessoas fossem para o banheiro, evitando que do lado de fora
flagrassem o que ocorria. Obrigou o caixa Ernesto a pôr as mãos atrás do pescoço e amarrou
seus pulsos com uma corda fina. A cliente Elaine chorou, e Elinho a acalmou: “Não está acontecendo nada.”
Marighella e Marquito limparam os caixas, nos quais arrecadaram 23 mil cruzeiros novos, ou 124 mil reais atualizados. Sem disparar um tiro, os três fugiram com o motorista que os esperava no automóvel de motor ligado.”   



Talvez tivessem escapado pela alameda Barros, caminho que eu segui para continuar minha jornada, que teve como passagem seguinte a rua Martim Francisco, onde Marighella viveu com Clara Charf seus últimos dias.
A ordem de meu caminho não segue a estrada do tempo; salto de novo para o passado chegando até o prédio onde hoje funcionam a Estação Pinacoteca (dita Pina) e o emocionante, imprescindível Museu da Resistência.
No tempo da ditadura, o prédio abrigou o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), masmorras de tortura e celas que receberam combatentes da liberdade, como Marighella.
Avanço algumas centenas de metros para encontrar a estação da Luz. Foi ali que, em 15 de agosto de 1968, militantes da ALN pegaram o trem que os levou até Piraporinha, onde tomaram os transmissores da rádio Nacional, e colocaram no ar uma gravação de manifesto escrito por Marighella (a voz não era dele).
O texto denunciava os crimes da ditadura militar e apresentava os objetivos do movimento guerrilheiro: “1) derrubar a ditadura militar, anular todos os seus atos desde 1964, formar um governo revolucionário do povo; 2) expulsar do país os norte-americanos, expropriar firmas, bens e propriedades deles e dos que com eles colaboram; 3) expropriar os latifundiários, acabar com o latifúndio, transformar e melhorar as condições de vida dos operários, dos camponeses e das classes médias, extinguindo ao mesmo tempo e definitivamente a política de aumento de impostos, dos preços e aluguéis; 4) acabar com a censura, instituir a liberdade de imprensa, de crítica e de organização; 5) retirar o Brasil da condição de satélite da política externa dos Estados Unidos e colocá-lo, no plano mundial, como uma nação independente, reatando ao mesmo tempo laços diplomáticos com Cuba e todos os demais países socialistas.”
O texto divulgado naquela ação foi depois gravado pelo próprio Marighella e distribuído pela Rádio Libertadora, com introdução de Iara Xavier Pereira. Eis o áudio, na íntegra:


Dei as costas para a estação da Luz e comecei a correr para o tempo presente, o hoje, para encontrar a turma que, àquela altura, já tinha começado a homenagem a Carlos Marighella na alameda Casa Branca.
Rodei pelo centro velho, subi a Augusta, cruzei a Paulista e enfim consegui chegar a tempo, antes do final da celebração. Pude ouvir parte do discurso de Clara Charf, que mais tarde me concedeu entrevista exclusiva. E gritei com todos: “Carlos Marighella, PRESENTE! PRESENTE PRESENTE!
Antes da dispersão, consegui conversar com o filho do líder revolucionário, também ele de nome Carlos. Ele contou um pouquinho do drama vivido pela família para simplesmente conseguir prantear Marighella.


As palavras de Carlos, filho, apontam para o futuro, para a continuação da luta pela democracia. Esse é o legado do líder revolucionário, avalia Adriano Diogo, que também militou na ALN e hoje é secretário nacional de direitos humanos do Partido dos Trabalhadores.


Homenagear o combatente do passado não é apenas um momento de lembrar um herói; acima de tudo, é buscar inspiração, é “recarregar as baterias”, como disse o advogado Aton Fon Filho, outro veterano militante presente à celebração na alameda Casa Branca.


Depois de ouvir a todos eles, segui pelo asfalto em meu caminho de volta para casa, num trajeto que teria, ao final, dezenove quilômetros. Foi suado, foi dolorido, foi gostoso, emocionante. E acumulei quilometragem no meu périplo para completar, ao longo deste ano, distância equivalente à de sessenta maratonas, forma que encontrei para festejar meu sexagenário.
Ainda falta mais de cem quilômetros. É bastante, mas muito menos do que faltava quando eu comecei.
VAMO QUE VAMO!!


Percurso da Corrida Carlos Marighella, realizada em seis de novembro de 2017
19,10 quilômetros percorridos em 2h56min04
Acumulado no projeto 60M60A
2.394 quilômetros percorridos em 425h36
  





1.11.17

Feliz aniversário, querido blog; que a corrida te seja leve!!!

“Começou a circular o Expresso 2222 da Central do Brasil, que parte direto...”  Pois se tivesse um dois a menos, bem que a música de Gilberto Gil poderia estar se referindo aos meus treinos neste ano: completei hoje 222 dias de caminhadas e corridas na jornada para totalizar antes do final do ano distância equivalente à de sessenta maratonas.
Estou chegando perto de somar os mais de dois mil e quinhentos quilômetros necessários. De fato, na ponta do lápis e auxiliado pela calculadora e por sensacionais programas de controle e fiscalização de quilômetros percorridos, faltam apenas 171 quilômetros para atingir a meta. O número não é muito elegante, lembra escroques, fraudes e fraudadores, mas aqui não tem nada disso não, é músculo semovente e suor no asfalto.
Se nenhuma desgraça acontecer, completarei meu desafio com uma semana de vantagem sobre o planejado. A ideia era fazer os 2.532 quilômetros ao longo deste ano, mas cortei quatro semanas para que ficassem de reserva, em caso de gripes ou outros incômodos que me dificultassem ou impedissem a corrida.
Assim, os cálculos feitos com o apoio de meu treinador, Alexandre Blass, dividiram a distância total por 48 semanas. Se tudo correr bem, terminarei em 47 semanas. O que mostra que velhos fora de forma, desde que consigam se dedicar e manter a saúde, são aptos a fazer coisas tidas como improváveis para os veteranos da vida.
Não são. E não falo por mim, mas sim pelos tantos idosos esportistas que tenho encontrado pelas minhas corridas a fora.
Esses dias mesmo, correndo no Ibirapuera e já quase mancando de cansado, vejo um velhinho bem mais velhinho do que eu, talvez uns quinze anos a mais, mandando ver, correndo num ritmo inimaginável para mim.
No olhômetro, diria que o sujeito, puro osso e músculo, um pouco mais baixo que eu, estava num ritmo perto de cinco minutos por quilômetro, talvez cinco e meio por quilômetro no mínimo. Além de admirar o velhinho, fiquei um uma boa dose de raiva do sujeito e uma vontade incontida de lhe socar umas porradas.
Mas é assim, cada um com seu cada qual.
Naquele dia mesmo, da inveja mortífera, eu estava caindo pelas tabelas. Tinha começado um treino de blocos de 2.700 metros correndo e 300 metros caminhando. Era para eu fazer seis blocos, mas no terceiro já estava não apenas com a língua de fora, mas com dores por tudo que fosse abaixo do umbigo.
É assim: tem o “psoas”, que é um músculo sacaninha que se esgueira pelo lado da asa do quadril e vai descendo, ligando a coluna às pernas. Curto, inserido nas profundezas, é o maior estabilizador do corpo humano e o carregador do piano quando a gente se movimenta.
Pois o desgramado às vezes dói, às vezes não dói. Quando dói, é um sufoco. A gente vai se curvando, se remexendo, remoendo, encasmurrando; é uma droga. Se não dói, beleza, vamo que vamo!
Naquele dia, doeu. Hoje não doeu, e eu treinei que foi uma beleza, corri quase duas horas para completar com satisfação este dia 222 de minha jornada.
Repeti o número para voltar à música do Gil que, como sabemos, tem um dois a mais. Mas a inspiração para a criação, conta-nos o próprio Gil, era tal e qual o meu número de hoje:
“Da infância até a idade adulta eu fiz muita viagem de trem, que era um dos meios de transportes fundamentais para nós da Bahia. Os trens da Companhia Leste Brasileira --e outros-- saindo e entrando nas estações, em Salvador, em Ituaçu, em Nazaré das Farinhas, me marcaram. Não sei por que cargas d'água, essa repetição do 2 era algo de que eu estava impregnado; alguma locomotiva, de número 222, que eu vi, ficou na minha cabeça e, quando comecei a letra, a primeira imagem que me veio foi dela."
Apesar de quase verão, hoje fez tempo bom para correr: céu nublado, temperatura até altinha, mas o vento compensava, equilibrava. Nem suei muito, nem sofri, foi um bom dia.
Um dia de festejar um quase aniversário: amanhã, Dia dos Mortos, este blog completa onze anos.
Nasceu diferente, com outro nome, “+Corrida”, e nasceu pioneiro: foi a primeira publicação do gênero em um grande portal de notícias, pendurado que estava no braço internético na “Folha de S. Paulo”, onde eu trabalhava na época como editor do caderno de Informática.
Tinha uma irmã gêmea, uma coluna publicada uma vez por mês no jornal impresso, no caderno Equilíbrio. Também ela pioneira –o extinto “Jornal do Brasil”, de saudosa memória, chegou a ter uma seção sobre corridas de rua, mas o espírito da publicação era diferente.
Os dois, coluna e blog, tiveram um filho espevitado e marrento. Em 2009, depois de três anos de muitas entrevistas bacanas, reportagens, dicas, opiniões e reflexões sobre o que é a corrida na minha vida, na vida de cada um, nasceu o livro “+Corrida”, editado pela Publifolha.
Mais do que orgulho, tenho muita satisfação de ter produzido essas coisas todas e continuar na labuta de produzir informações, divulgar fatos, contar histórias.
A de hoje, construída em meu treino sem dor, é gerada a partir do olhar de corredor.
Fiquei dando voltas na parte alta da avenida Sumaré, girando qual hamster em sua rodinha, olhando para onde caísse meu olhar.
Vi pichações e muitos cartazes, o que a turma chama de lambe-lambe. Um dos mais divertidos oferecia “cola para corações quebrados”.


Era arte de uma cara que se apelida MaickNuclear. Há uns tantos anos, cruzei com ele, fiz uma entrevista com o sujeito. Publicado em 2012, o texto informava: “Por trás da identidade do tal MaickNuclear, está um rapaz que completa 31 anos neste mês, atende por Maick Thiago Lenin. É morador do Parque Edu Chaves, zona norte, paulistano da gema, "filho da terra da garoa", como ele diz” (CLIQUE AQUI para ler o texto completo).
Há mais nos muros que margeiam a Sumaré. Não muros; pilastras de viaduto, muretas de proteção de viadutos. Alguns são assinados com orgulho. Outros permanecem anônimos, com os rostos que apresentam, colados entre o asfalto e o céu, ondas no mar de edifícios da zona oeste da Pauliceia.


É com eles que eu vou, esses rostos, essas pinturas, esses desenhos, esses dizeres. Palavras todas com que sigo construindo minha jornada, empoderando meus quilômetros, dando sustância ao meu caminho.
Por isso eu digo, sigo dizendo e, se houver mais quem diga, diremos juntos:
VAMO QUE VAMO!!!  (e FORA TEMER!)