31.3.16

“A construção da democracia não foi um passeio”, diz Dodora, pioneira da luta pela anistia

Com um sorriso e um abraço, ela me recebe. Miúda, de cabelos prateados, pequeno brinco em forma de flor, blusa vinho, calça de ginástica e tênis, ela está pronta para nossa caminhada, em que vai desafiar uma lesão no joelho tratada com dezenas de sessões de fisioterapia.

Nosso encontro é em frente ao Tuca, o Teatro da PUC, que foi palco de uma das construções de Dodora. Um marco de ferro em que estão esculpidas as letras da palavra A N I S T I A lembra que ali foi realizado, em novembro de 1978, o 1º Congresso Nacional pela Anistia.

Ex-presa política, Maria Auxiliadora Arantes, hoje com 75 anos, foi uma das forças a sustentar o movimento. Fez parte das pioneiras que deram o ponto de partida para a criação dos comitês de anistia, como contou em entrevista à historiadora Laura Lucena, alguns dias antes de nosso encontro:
Eu era uma militante da Ação Popular Marxista Leninista, e meu marido, Aldo Arantes, estava preso num presídio do Barro Branco. Tinha sido muito torturado no DOI-Codi e depois foi para o Barro Branco, onde podia receber visitas, que era quando as famílias dos presos políticos se encontravam. Numa dessas visitas, fiquei conhecendo  a Celeste Fon, que era também do Sedes, e estava com dois irmãos presos, o jornalista Antônio Carlos Fon e o Aton Fon Filho. O nosso advogado comum, Luiz Eduardo Greenhalgh propôs uma reunião de familiares dos presos políticos do Barro Branco. Começamos a fazer essas reuniões e fomos organizando o que foi o programa de anistia do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo.”



Agora, em frente à PUC, antes do início da 38ª jornada da CORRIDA POR MANOEL, ela lembra aqueles momentos, fazendo em primeiro lugar uma homenagem à ex-reitora da PUC Nadir Kfouri, que abriu as portas da universidade e do teatro para a realização do congresso da anistia.

“A gente não sabia quantas pessoas estariam presentes. O teatro lotou. Veio gente do Brasil inteiro, do exterior. A partir dali, a luta tomou impulso.”

Luta em que ela participava desde muito jovem, como conta enquanto caminhamos pelas ruas de Perdizes, na zona oeste de São Paulo.

“Eu vi os tanques desfilando em Brasília. Eu morava lá, trabalhava no governo do Jango. Foi um golpe armado pesado e muito concreto”, diz ela.

Com o marido, muito procurado por ter sido presidente da UNE, saiu para o exílio logo nos primeiros dias. Foram para o Uruguai, onde nasceu seu primeiro filho, André.

Mas não dava para ficar longe: queriam trabalhar na resistência democrática, deram um jeito de voltar ao país. “A AP tinha uma proposta de integração dos militanbtes na produção. Então fomos eu e a minha família morar no interior de Alagoas com a intenção não só de fazer um trabalho político, mas ter um estilo de compromisso maior com a situação do Brasil, com as classes camponesas, conhecer mais de perto a situação dramática do povo brasileiro. Fomos todos presos, dia 13 de dezembro de 68, com o AI-5. Meus filhos eram pequenos de dois e três anos de idade, ficamos presos lá em Alagoas durante quase cinco meses”.

Absolvida no IPM, seguiu fazendo trabalho político, agindo na clandestinidade até que, em 1976, Aldo Arantes é preso quando a polícia invade uma reunião do PC do B em São Paulo. Começa a fazer contatos com os advogados, faz visitas ao presídio, participa de encontros em que se organiza a luta pela anistia.

A primeira reunião –de muitas que se seguiram— é realizada no Instituto Sedes Sapientiae, a poucas quadras da PUC, onde começamos a jornada de hoje.



O instituto era então uma entidade muito jovem. Tinha sido criado em 1975 por iniciativa da madre Cristina Sodré Dória (1916-1997), que pretendia fazer dele um espaço de encontro entre pensamento, atuação e trabalho social, comprometido com a defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão. A religiosa era também uma espécie de madrinha de militantes que precisassem de ajuda.

A madre Cristina sempre foi uma aliada de militantes resistentes, de várias organizações políticas clandestinas, as quais ela ajudou na condição de ser uma dirigente do Sedes e vinculada a uma instituição religiosa, de Santo Agostinho. Ela sempre teve uma posição muito solidária, fraterna, aberta à defesa da democracia, à denúncia da violência, e, sobretudo, à denúncia das questões mais graves que a ditadura foi apontando: os assassinatos políticos, desaparecimentos políticos, tortura, maus tratos, banimento, cassação. O Sedes era um lugar de abrigo, acolhimento, atuando, assim, em uma clandestinidade parcial. A ditadura ainda vigorava. Os militares ainda estavam no poder, tudo o que se fazia era de uma forma discreta.”


Não só a ditadura estava em pleno vigor, como ali perto da sede do instituto havia prova viva da violência criminosa perpetrada pelo regime: o convento dos frades dominicanos, invadido em 1969 pela polícia.

Hoje não há marcas no prédio de cimento, de construção até modernosa, linhas retas, severas. Basta falar com qualquer um dos religiosos, porém, que a memória se aviva como um turbilhão: nos dias que precederam a morte de Marighella foram presos os frades Domingos Maia Leite (provincial), Edson Braga de Souza (prior), Maurício (padre), e os estudantes Tito de Alencar, Roberto Romano, Nestor de Brito, Giorgio Callegari.



Apesar das cicatrizes deixadas pela repressão, os dominicanos seguiram firmes, acolhendo o movimento de resistência à ditadura, tanto que o convento, nos meados dos anos 1970 abriu suas salas para reuniões dos grupos de familiares de presos políticos e entidades que lutavam pela anistia.

Foram muitos os que se somaram à campanha da resistência. Na nossa breve caminhada pelo bairro de Perdizes, já passamos pela PUC de atos grandiosos, pelo convento dos dominicanos e, com mais dois quarteirões, cruzamos pela frente da casa onde viveu Therezinha Zerbini (1928-2015).

Casada com um general –Euryale, um dos poucos de sua patente cassados pelo Golpe de 64--, foi presa em 1970 por ter ajudado a conseguir o sítio em Ibiúna onde seria realizado o congresso da UNE. Ficou oito meses da prisão, boa parte deles no presídio Tiradentes, onde conviveu com a então  guerrilheira Dilma Rousseff. Em 1975, criou o Movimento Feminino Pela Anistia.

“As pessoas estavam cansadas [de tanta violência]”, avalia hoje Dodora. “Havia  familiares que sabiam o que estava acontecendo, tinha os exilados, os banidos, havia a imprensa dos movimentos clandestinos. Todas as nossas publicações eram muito duras. Eram feitas pelos presos políticos dentro da cadeia, que falavam “fui torturado assim tantos dias, por tal torturador, os outros viram, o outro morreu”. Tudo saiu de dentro da cadeia.”

Grande parte dos documentos foi abrigada, escondida e protegida  pelo Instituto Sedes Sapientiae. Logo depois da anistia, advogados de presos políticos trataram de, aos poucos, fizeram cópias dos inquéritos, dos processos instaurados pela ditadura militar.

Afinal, eles eram também denúncias documentadas sobre os crimes que a repressão havia cometido. Neles, os presos denunciavam as torturas, os maus tratos, as ações da repressão.

Carlos Lichstsztejn, diretor do Sedes, mostra assinaturas de ex-presos políticos no verso de gravura
“Havia aqui sala e salas com a papelada”, conta o diretor do Sedes Sapientiae, Carlos Lichstsztejn, que nos recebeu em uma das paradas que fizemos na caminhada de hoje.

O trabalho de pesquisa, estudo e analise dos processos que se encontravam no Supremo Tribunal Militar em 1980/1981 foi um projeto patrocinado pelo Conselho Mundial de Igrejas na Suiça e no Brasil por dom Paulo Evaristo e o pastor Jaime Wright (irmão de Paulo Wright,  desaparecido político)

Esse projeto teve como objetivo denunciar os crimes da ditadura com os próprios documentos do complexo policial militar do governo civil militar.

Nesses mais de 700 processos constam inúmeras denúncias e provas de assassinatos, torturas, estupros, desaparecimentos e um sem número de arbitrariedades cometidas pela ditadura e seus agentes, corroboradas pela Justiça Militar evidenciado essas atrocidades como política de estado da ditadura.

Esse projeto culminou em uma série de livros denominados "Brasil Tortura Nunca Mais", lançados a partir de janeiro de 1985, sendo o primeiro prefaciado por dom Paulo.

O prédio todo do Sedes, onde são realizados cursos diversos, além de atendimento psicológico, é uma espécie de arquivo do movimento pela anistia.

Nas paredes de sua biblioteca, por exemplo, estão exibidos pôsteres com as figuras emblemáticas da luta: o senador Teotônio Vilela, que presidiu a comissão do Congresso que analisou o projeto da anistia, o jornalista Perseu Abramo, madre Cristina, o reverendo James Wright e o cartunista Henfil.

Em um armário de vidro, há bibelôs e suvenires das campanhas, além de álbuns de fotografai em que estão registradas imagens históricas da luta do povo brasileiro contra a ditadura. Em outras paredes, obras realizadas por presos políticos.

Cartazes do movimento em defesa da democracia, nos dias de hoje, colados em paredes de prédios da PUC


Ajudam a mostrar a alma do instituto, sua identidade, sua presença nas campanhas pela defesa da vida –afinal, é disso que se tratava e se trata hoje a defesa da democracia, como diz Dodora, do alto de suas muitas décadas de militância:

“Hoje estamos aqui --quantos anos depois ?-- lutando pelas causas semelhantes, pela sustentação da democracia. Nesse trajeto morreu muita gente. Muitas pessoas foram torturadas, muitas famílias foram destroçadas, tem todos os desaparecidos. Os responsáveis não foram sequer julgados, responsabilizados. É uma clausula pétrea da construção da democracia: você não pode construir um país sem que todos os que fizeram em determinado momento essa luta contra a democracia fiquem impunes.”

Ela adverte: “Falta uma determinação política para responsabilizar julgar e punir os torturadores. Essa é uma questão que cabe a nós todos da sociedade brasileira”.
E concluiu, falando em frente à PUC: “A construção da democracia não foi um passeio. Ela foi uma luta de que a gente não pode desistir”. 



CORRIDA POR MANOEL – 38ª etapa
Destino – Tuca, convento dos dominicanos, instituto Sedes Sapientiae, com Maria Auxiliadora Arantes, em percurso de 5,43 km realizado em 2h09
Distância total já percorrida: 402,20 km


30.3.16

História de Santo Dias inspira lutas comunitárias no Capão Redondo


A rua Quararibeia, na zona sul de São Paulo, tem pouco mais de 600 metros e o asfalto manchado de sangue. Sob a poeira do tempo, não se veem mais as marcas vermelhas –elas estão gravadas na história das lutas dos trabalhadores.

Foi lá, em frente à antiga fábrica da lâmpadas Sylvania, no número 242 da ruazinha com nome de árvore, que Santo Dias da Silva foi assassinado.

Homem de paz, religioso, católico fervoroso, estava armado apenas com suas convicções. Liderança dos grevistas, tinha sido chamado para a Sylvania para reforçar um piquete –iniciada dois dias antes, a greve fraquejava.

A Wikipedia registra assim aquele momento: “No primeiro dia da paralisação, 28 de outubro, as subsedes do sindicato, abertas para abrigar os comandos de greve, foram invadidas pela Polícia Militar, que prendeu mais de 130 pessoas. Sem o apoio do sindicato e com a intensa repressão policial, os metalúrgicos passaram a se reunir na Capela do Socorro, na Zona Sul da cidade de São Paulo - a região de maior concentração de operários da categoria. No dia 30, Santo Dias, como parte do comando de greve, sai da Capela do Socorro para engrossar um piquete na frente da fábrica Sylvania e discutir com os operários que entrariam no turno das 14h”.


“Viaturas da PM chegam e Santo Dias tenta dialogar com os policiais para libertar um companheiro preso. A polícia agiu com brutalidade e o PM Herculano Leonel atirou em Santo Dias. Ele foi levado pelos policiais para o Pronto Socorro de Santo Amaro, mas já estava morto. O corpo de Santo Dias só não "desapareceu" por conta da coragem de Ana Maria, sua esposa. Ela entrou no carro que transportava seu corpo para o Instituto Médico Legal; apesar de abalada emocionalmente, e mesmo pressionada pelos policiais a descer, não cedeu.”

Paulista de Terra Roxa, filho de agricultores sem terra, Santo tinha 37 anos quando foi assassinado, em 1979, e se tornou um mártir do movimento operário brasileiro. Deixou viúva e um casal de filhos.



Para homenagear esse grande militante –e, de certa forma, também líder religioso--, escolhi visitar não o ponto de sua morte, mas um local em que sua herança de luta é mantida viva, presente.

Na 37ª jornada da CORRIDA POR MANOEL, estive hoje no parque Santo Dias, no coração do Capão Redondo, o distrito onde o metalúrgico vivia e onde acabou por ser assassinado.

Simplesmente dizer o nome do bairro, até bem pouco tempo atrás, era sinônimo de falar em violência policial e altos índices de criminalidade.

No final de junho de 2012, por exemplo, foram registrados 21 homicídios em apenas 11 dias –e as suspeitas são de que a maioria deles tenha sido responsabilidade da polícia. A população reage, queima ônibus, protesta, picha. E segue o baile.

Em 2014, o distrito policial que atende o bairro era o quarto em número de casos de morte. E a ação da polícia às margens dali continuava, com PMs atacando até mesmo manifestações culturais no bairro.

No ano passado, um evento cultural de música jamaicana realizado com regularidade no Bar do Saldanha se transformou em vítima da ação da Polícia Militar, como relata reportagem publicada na “Carta Capital”:

“Por volta das 2h30 da manhã, chegaram algumas viaturas da PM e, sem dar nenhum tipo de justificativa ou mesmo um aviso, foi dado um tiro para o alto, anunciando a chuva de bombas de gás lacrimogêneo. As pessoas que estavam no local, pegas totalmente de surpresa, corriam desesperadas enquanto tentavam entender o que estava acontecendo. Após isso, há ainda noticia de grupos que estavam indo embora a pé (não há transporte público no horário) terem sido abordados e agredidos, e também de viaturas que perseguiram pessoas durante um longo percurso fazendo constantemente ameaças.”
Capão Redondo é longe. A estação de metrô que serve a área fica a maisde 15 quilômetros da estação que tomei como ponto de partida, na zona oeste de São Paulo.
Fui pela Francisco Moratto, passei pelo estádio do São Paulo e subi a poderosa e longa rampa da Giovanni Gronchi. Ela é um rosário de edifícios, que mal permitem ao passante ver o que se espraia ao longe. No alto, porém, algumas ruelas dão vista para as encostas.


O contraste salta aos olhos. Prédios gigantes pendurados sobre os casebres e as casas mal ajambradas da comunidade de Paraisópolis. Ali, em cerca de um quilômetro quadrado, vivem quase 100 mil pessoas, e há 12 mil analfabetos, segundo informam associações da comunidade.
Passo do topo do morro, inicio minha descida. É quando um sujeito já de idade precisa tomar cuidado: pode tropeçar, torcer o pé, deixar doídas as costelas. Por isso, vou com cuidado, também prestando atenção para não perder a rua que vai me colocar na direção certeira de Campo Limpo, parada prévia a Capão Redondo.
Nem prestando atenção, nem olhando o mapa no celular, acertei. Corrigindo meu caminho, peguei uma ruela que me levou a uma espécie de perimetral do bairro chamado de Vila das Belezas; pelo que vi, só pode ser ironia...

Já era tarde, o sol batia forte, e eu estava atrasado para meu encontro, que seria na estação Campo Limpo. Apesar de as subidas e descidas terem me deixado ainda mais lento do que normalmente sou, cheguei a tempo de salvar o dia: minha anfitriã estava atravessando a rua para ir embora.
Mas deu tudo certo, e segui correndo com Marineide Santos Silva, líder comunitária do Capão Redondo, idealizadora e coordenadora do Vida Corrida, projeto de inclusão social e um projeto de inclusão social por meio do esporte.
Conheço a Neide desde que comecei a correr. Ela já fazia parte da equipe onde, em 1998, aprendi noções básicas de treinamento para provas de longa distância.
Neide já sabia muito: corria desde os 14 anos. O esporte foi uma espécie de válvula de escape para as durezas da vida. Nascida em 1960 em Porto Seguro, chegou a São Paulo com a mãe retirante e cinco irmãos.
Com seis, sete anos, a menina foi entregue em adoção –era o jeito de conseguir casa e comida. Passou por três famílias, seguiu vivendo. Estudou, trabalhou, correu.
“Acho que eu nasci para o esporte”, diz ela, contando que alguém já calculou que seus treinos e maratonas –37, pela última conta—já somam quilômetros suficientes para duas voltas ao mundo...
Pode ser, pode não ser. O certo é que ela conhece muito o chão do Capão Redondo e já deu milhões de passadas nas trilhas do Parque Santo Dias, para onde me leva na manhã de hoje.
No caminho, fazemos uma breve parada para apreciar uma obra de arte, orgulho do bairro. Trata-se de um trabalho do mundialmente famoso grafiteiro Kobra, que retratou num mural o grupo de rap Racionais MC`s –cria do Capão Redondo e referência para a juventude local.


Sob o olhar de Mano Brown, seguimos  até o parque, chegando a ele por umas quebradas só conhecidas da turma da área. O Santo Dias, com o perdão do trocadilho, é uma área santificada no bairro.
Nascido na mata, batizado Capão Redondo por causa de uma floresta de araucárias que havia na região, hoje a cara do bairro é cinza, tomado por prédios, casas baixas e pobres, asfalto, favelas. O parque, berço do bairro –é ali pertinho o marco zero do Capão—é um das poucas áreas verdes que sobraram.
“Foi resultado da luta da comunidade”, conta Clodoaldo Cajado, administrador do parque e um dos integrantes da associação que, no início dos anos 1990, impediu que a área fosse entregue à especulação imobiliária.


Hoje, além das trilhas bem sombreadas, o parque abriga projetos comunitários, tem diversas quadras esportivas e áreas de treino. O projeto Vida Corrida, comandando por Neide, atende 200 adultos e 250 crianças – oferece cursos de inglês, aulas de ioga, treinamento de corrida. E forma atletas.
Um “filho” do Vida Corrida estará nos Jogos do Rio-2016, na Paraolimpíada. Júlio Cesar Agripino, 25 anos, deficiente visual, vai competir nos 1.500 m e nos 5.000, e a turma toda desde já torce por medalha.
É um resultado do trabalho de grupo, destaca Cajado. “Hoje temos outras pessoas que, como Santo Dias, se dedicam a trabalhar pelo coletivo, pelo bem comum.”


CORRIDA POR MANOEL – 37ª etapa
Destino: Parque Santo Dias, percurso de 19,10 km realizado em 2h48

Distância percorrida até agora: 396,77 km

29.3.16

Metalúrgicos de Osasco sinalizam caminho da luta pela democracia

Elas mexiam com pólvora o dia inteiro. Em 16 de junho de 1968, seus corações pegaram fogo.

Como se fossem uma, as 500 trabalhadoras da Fósforos Granada pararam, desligaram máquinas, saíram de seus postos de trabalho, cruzaram os braços. E foram para a rua, que já começava a ser ocupada pela polícia.

Nem metalúrgicas eram, aquelas moças. Mal ouviam falar de sindicato, porque a entidade dos químicos, que supostamente as representavam, estava calada, quieta, talvez até agindo de braços com o inimigo. 

As mulheres da pólvora, não.

Mesmo sem comissão de fábrica, sem terem visto panfletos nem acompanhado discursos, sabiam que precisavam agir, que os companheiros do outro lado da rua necessitavam seu apoio, sua presença, sua participação.

Aquecimento em preparação para a caminhada - Fotos Eleonora de Lucena


Em pleno vigor da violência policial e política sobre os trabalhadores, no momento em que qualquer atitude de rebeldia ou de protesto era recebida a borrachada, prisão e assassinato, os metalúrgicos de Osasco se levantaram.

O apito da Cobrasma, que dava a hora do dia para toda a cidade, tocou diferente. Quando soou, inesperadamente, por volta das 8h30, foi o sinal para os trabalhadores agirem.

Sem um tiro, apenas com a força do movimento, tomaram as guaritas da fábrica, fecharam os portões, pararam as máquinas, ocuparam o complexo fabril onde mourejavam milhares de operários.

Construída em silêncio, na clandestinidade, a tomada da Cobrasma transformou-se em grito pelas ruas de Osasco.

Como se fossem peças de dominó enfileiradas, as outras fábricas instaladas ao longo da avenida dos Autonomistas foram caindo. Na Lonaflex, onde os trabalhares tinham conquistado melhorias salariais e funcionais havia pouco tempo, a paralisação foi em solidariedade.

Neto explica como eram as instalações da Lonaflex, aponta onde ficavam os prédios da fábrica


E foi por solidariedade que as mulheres da Fósforos Granada pararam, saíram para a rua e seguiram em passeata até o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, continuaram até a Cobrasma ocupada.  

Lá chegando, ocuparam de imediato postos de sustentação do movimento. Organizaram uma enfermaria, trataram de botar a cozinha em ordem, ajudaram a solidificar a infraestrutura da greve.

A história da paralisação das químicas, de sua determinação solidária, foi contada e recontada na manhã de hoje em Osasco, em caminhada que relembrou a Grande Greve de 1968. Foi a 36ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, que contou com o apoio, a presença e a organização dos Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco.

Já com sol forte, nossa turma se reuniu no local onde, há 50 anos, funcionava a Lonaflex, a segunda grande fábrica a parar na greve de 68. Hoje é um enorme shopping, mas o grande espaço aberto não impediu que grevistas da época revivessem aquelas momentos dramáticos, emocionantes, assustadores e instigantes.

Jorge Nazareno, presidente do Sindcato dos Metalúrgicos de Osasco, comanda a caminhada da 36ª etapa da CORRIDA POR MANOEL

Dos mais profundos escaninhos de sua memória, um dos fundadores do Sindicato contava como os trabalhadores se organizavam na época, como eram os prédios da empresa.

Manoel Dias do Nascimento, o Neto, mais tarde seria um dos quadros da Vanguarda Popular Revolucionário, ajudando a organizar a infraestrutura do trabalho de treinamento de guerrilha comandando pelo capitão Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. Preso, foi um dos libertados no sequestro do embaixador suíço, em 1970.

Isso tudo foi depois. Agora, enquanto nos concentramos para a caminhada, Neto foca em 68, lembra como todos se organizavam para passar por cima de eventuais diferenças de visão política:

O companheiro podia ser da Polop, do Partido Comunista, do PC do B, mas, quando chegava dentro do sindicato, a palavra era: ‘Olha meu caro, a camisa aqui é do sindicato. A camisa aqui é dos trabalhadores’”.

Blogueiro barbudo tietando Neto e Espinosa

Foi com essa visão, afirma, que conseguiram montar o movimento que desafiou a ditadura militar, que colocou nas ruas a voz dos operários, que foi um precursor das grandes greves do ABC paulista.

Movimentos todos que deixaram grandes exemplos de luta e de lutadores, de mártires como Manoel Fiel Filho, destacou Jorge Nazareno, o presidente do sindicato, que assumiu também o comando de nossa jornada de hoje.

Com faixas e cartazes, o grupo de cerca de 30 pessoas ocupou uma das faixas da avenida dos Autonomistas e desceu para um mergulho na história das lutas operárias.



Fizemos breves paradas em frente aos locais onde funcionaram gigantes daquela época, hoje não mais atuantes em Osasco, como a Asea Brown Bovery, que também faz parte de minhas memórias como repórter.

Uma das primeiras reportagens de campo que fiz, trabalhando na revista de informática “Dados & Ideias”, lá nos idos de 1984, incluiu uma visita à ABB. A fabricante de turbinas para usinas elétricas era, na época, pioneira no uso de CAD/CAM, desenho e manufatura auxiliados por computador.

Minhas lembranças, porém, se esfarelam sob o sol forte. Há que prestar atenção nas histórias que contam agora outros militantes dos idos de 1968.

Está conosco ninguém menos que Antonio Roberto Espinosa, jornalista e professor universitário que foi um dos comandantes da VPR e, mais tarde, da também guerrilheira VAR-Palmares. Em 68, com 21 anos, estava cursando filosofia na USP e ajudou a organizar a ocupação da Cobrasma. 

“O momento mais emocionante foi quando vi que a greve começava mesmo, que estava dando certo. O apito tocou por volta das oito e meia, e os companheiros ocuparam as guaritas, fecharam os portões, desligaram as máquinas.”

O sonho da VPR era de que a greve fosse como uma faísca a incendiar o Brasil.

“Imaginávamos que o Ministério do Trabalho levaria alguns dias para botar a polícia. Em Contagem, em abril, eles tiveram uma tolerância de quase duas semanas, dez dias. Nós contávamos com alguns dias.”

Com aquele prazo, diz Espinosa, seria possível a expansão do movimento: “A gente contava com uma ampliação para Guarulhos, com a adesão parcial de São Bernardo. Depois, outras regiões, Cubatão, no Rio de Janeiro”.

Nada disso aconteceu, mas a greve da Cobrasma recebeu o apoio dos trabalhadores das outras empresas ao logno da avenida dos autonomistas, como a Braseixos e Barreto Keller.



Na Lonaflex, tomada pelos operários, ninguém entrava nem saía; um dos patrões fugiu pulando o muro da firma. 
Outro, segundo nos contou Neto, pediu licença para sair à tarde, para buscar o filho na escola. Prometeu que voltaria e cumpriu sua promessa.

No final da tarde do dia 16, porém, a situação começou a mudar. 

Diferentemente do esperado pelos organizadores do movimento, a repressão resolveu agir. Foram mandados soldados da Força Pública, cavalarianos, para invadir a Cobrasma e expulsar de lá os grevistas.


Em frente ao prédio onde funcionou a empresa, já com mais de três quilômetros de caminhada na nossa jornada de hoje, Espinosa lembra aquele momento, nos conta o histórico discurso de Zequinha Barreto aos militares chamados para o ataque.

Barreto era baiano de Brotas de Macaúbas. Em 1964, aos 18 anos, deixou o seminário e veio para São Paulo fazer o serviço militar. Serviu em Quitaúna, mesmo quartel em que atuou Carlos Lamarca, com quem iria morrer em 17 de setembro de 1971.

Zequinha, diz Espinosa, não tinha nada de diminutivo. “Quem ia chamar de Zequinha aquela baiano enorme, maior que eu, que andava por aí de chinelo de dedo? Para nós, ele era o Barretão.”

Quando a polícia chegou, deu-se o impasse. Ataca, não ataca, vai ter morte, operários se preparam para o choque, outros temem o pior, a soldadesca também não sabe o que fazer...

Zequinha, de figura grandiosa por natureza, torna-se ainda maior ao subir em um dos portões da fábrica, olhando de frente para a cavalaria e soltando o berro: “Atenção, soldados!”

Começou o que entraria para a história do movimento grevista brasileiro com um dos mais emocionantes pronunciamentos de uma liderança operária. Não há registro palavra por palavra, então vale a memória de quem estava lá, como Espinosa, que hoje estava conosco na CORRIDA POR MANOEL.

“Zequinha conclamou os soldados a abaixarem suas armas, que eles não poderiam sujar as mãos com o sangue de seus irmãos, que se rebelassem. Disse que ali na empresa havia pais, avôs dos próprios soldados, que lutavam por salários dignos, que o movimento era de todos os brasileiros...”



A palavra feriu mais fundo que a baioneta, os soldados pareceram baqueados, talvez tenha até havido um movimento de insegurança –o que fazemos agora--, mas a hierarquia e a disciplina falaram mais alto.

Zequinha tratou então de colocar em ação movimento protelatório. Segundo a lembrança de Espinosa, levava no bolso algo que poderia parecer uma granada –talvez fosse mesmo. O temor de um contra-ataque violento fez com que a invasão não ocorresse de imediato, dando tempo para que a maior parte dos operários fugisse antes da entrada dos soldados na Cobrasma.

O livro “Zequinha Barreto: A Trajetória de Um Revolucionário”, citado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, diz o seguinte sobre aquele episódio:

“Barreto viu que a situação ia ficar incontrolável e precisava tentar impedir que os soldados avançassem para reprimi-los. Acendeu uma tocha, correu para perto do depósito de gasolina e gritou: “Ou vocês param, ou vai todo mundo pro inferno!”. Com essa intervenção, ele favoreceu a fuga dos grevistas. Zequinha, muito solidário, foi ajudar os seus companheiros a pular o muro. Saiu quase por último e terminou surpreendido pelos soldados, que o levaram preso.”

Aquele foi o início de uma onda de prisões e enfrentamentos com a repressão. O sindicato foi ocupado pela polícia e retomado pelos trabalhadores. Um “aparelho” da VPR onde eram produzidos jornais e folhetos de propaganda do movimento foi estourado pela ditadura, e o trabalho teve de ser transferido para a zona oeste de São Paulo.

Nas ruas, aconteciam grandes assembleias. Em uma delas, dois oficiais do Exército que monitoravam clandestinamente a situação foram descobertos, desarmados e expulsos abaixo de socos e pontapés.

Esse, aliás, poderia ter sido também o fim do capitão Lamarca, caso tivesse sido descoberto pelos grevistas. Durante a greve, ele circulou pela cidade na mesma Kombi que depois usou para sair do quartel de Quitaúna levando um carregamento de fuzis. Pretendia prestar ajuda a algum ferido, mas poderia ter se dado mal, avalia Espinosa.

Depois de três dias, a greve de Osasco foi sufocada. Apesar de derrotado o movimento, os operários não perderam –nos meses seguintes, diz Espinosa, boa parte das fábricas acabou cedendo aumento e dando algumas melhorias na situação funcional.



O mais forte, mesmo, foi a herança política, na avaliação do então presidente do sindicato, José Ibrahim, que morreu em 2013. Falando na cerimônia que celebrou os 40 anos da greve, em 2008, ele afirmou:

Se não houvesse Osasco de 1968, não haveria o ABC de 78. Sinalizamos um caminho que o movimento sindical tinha que brigar pela resistência contra a ditadura, pela democracia. Esse foi o grande legado. Tanto é que durante todo o período da resistência a grande referência era a greve de Osasco. Hoje, para muita gente dentro do movimento sindical, a greve de Osasco é o grande marco.”

Um entendimento que também está presente nas palavras de Jorge Nazareno, que falou no encerramento de nossa jornada de hoje, em frente à Meritor, uma das poucas metalúrgicas que sobrevivem no entorno da avenida dos Autonomistas:

“Essa caminhada, relembrando a Greve de 1968, serve muito para o momento atual. Ela é muito oportuna para a gente saber que os desafios de 68 não terminaram ainda.”

E prosseguiu: “Nós temos de continuar firmes, perseverantes na luta pelos direitos dos trabalhadores, pelas conquistas sociais. Esse é um desafio de todos nós e implica que devemos todos ter participação na luta em defesa da democracia”.



CORRIDA POR MANOEL – 36ª etapa

Destino – Circuito da greve de 1968 em Osasco, 5,61 km realizados em 2h49


Distância percorrida até agora: 377,67 km

28.3.16

Morte de Manoel salva vidas e derrota a ditadura na Justiça

O assassinato de Manoel Fiel Filho deixou enlouquecidos os carcereiros, os torturadores, os chefetes e até o comandante do II Exército, para não falar do próprio general então presidente da República, Ernesto Geisel.

A equipe de plantão no DOI-Codi quando Manoel foi morto foi detida na semana seguinte “para averiguações”. O comandante do destacamento, tenente-coronel Audir Santos Maciel, foi transferido para o Rio de Janeiro. O subcomandante, tenente Dalmo Cirilo, foi mandando para Brasília.

O até então aparentemente todo-poderoso general Ednardo D`Ávila Melo, comandante supremo do II Exército e, portanto, do DOI-Codi, foi exonerado de suas funções.

Não aceitou a transferência. Pediu para passar à reserva e, no dia 20 de janeiro de 1976, viajou para o Rio de Janeiro, levar vida privada. Na noite anterior, reuniu-se com jornalistas que cobriam o II Exército, segundo conta o repórter Carlos Alberto Luppi.

Bebericando copos de uísque, dizia:

“Vocês me conhecem bem. Não sou partidário da violência. Eu nem estava em São Paulo. Exorbitaram. Não me deixaram agir. Eu iria tomar providências. Antes disso, me tiram do Comando. Assim, sem mais nem menos. Acho uma deselegância. Por isso não vou aceitar o cargo que me oferecem. Vou para a reserva. Não pretendo voltar mais à vida pública.”

Claro está que o general não informou se também achava “deselegância” a prática de torturas e o assassinato de presos sob sua guarda.

O general Ednardo nunca chegou a responder criminalmente pela morte de Manoel Fiel Filho. Morreu de câncer em 1984, aos 73 anos, no Rio de Janeiro. Foi enterrado sem honras militares –“a pedido da família”, segundo notícia da “Folha de S. Paulo”.  Geisel morreu em setembro de 1996, aos 89 anos.

Ao longo do período da ditadura, os demais envolvidos no crime nunca foram molestados. Mesmo depois da redemocratização do país, o processo de investigação dos crimes contra a humanidade –não prescritíveis mesmo depois de anistia—tem sido lento e cheio de fracassos.

Sabe-se quem são os criminosos, um por um. No 30º aniversário da morte de Manoel, o site Centro de Mídia Independente publicou texto produzido pelo PCB que afirma o seguinte:
“A Casa das Torturas no DOI-Codi era comandada pelo tenente coronel Audir Santos Maciel, tendo como subcomandante o major Dalmo Lucio Muniz Cirylo. O oficial do dia era o tenente da PM Tamoto Nakao. Os carcereiros do dia eram Alfredo Umeda e Antonio Jose Nocete, ambos soldados da PM. A equipe de interrogadores era composta pelo tenente Nakao e os delegados Harim Sampaio d´Oliveira e Edevard José. O interrogador pessoal de Fiel Filho foi o sargento Luiz Shinji Akaboshi. O enfermeiro de plantão era o sargento Moacyr Piffer, que era a autoridade para dizer se o preso ainda suportaria ser torturado ou não.”

Em junho de 2015, 39 anos depois do assassinato do metalúrgico, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra sete ex-agentes do DOI-Codi envolvidos no crime.

Notícia publicada na “Folha” diz: “O procurador Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia, pede a condenação do militar reformado Audir Santos Maciel, à época chefe do DOI. Para o Ministério Público, embora ele não estivesse na unidade durante os dias em que Fiel ficou preso, tinha "pleno conhecimento e domínio" do que ocorria lá. Tamotu Nakao, Edevardo José, Alfredo Umeda e Antônio José Nocete são acusados de homicídio triplamente qualificado --por motivo torpe, sob tortura e sem chance de defesa para a vítima. Já Ernesto Eleutério e José Antônio de Mello são acusados de fraudar laudos para forjar o suicídio de Fiel”.

Quatro décadas se passaram entre a morte e a acusação; para exonerá-los do crime, porém, a Justiça foi rápida.

A denúncia foi rejeitada dois meses depois de ter sido apresentada, por decisão do juiz Alessandro Diaféria, da 1ª Vara Federal Criminal em São Paulo.

Em seu despacho, ele afirmou: "Não se trata, aqui, de acobertar atos terríveis cometidos no passado, mas sim de pontuar que a pacificação social se dá, por vezes, a duras penas, nem que para isso haja o custo, elevado, de sensação de 'impunidade' àqueles que sofreram na própria carne os desmandos da opressão".

Há quase quarenta anos, porém, quando estavam em plena vigência os tais “desmandos da opressão”, advogados se muniram de coragem para enfrentá-los. E houve juízes que julgaram com base nos autos dos processos.

Não que a ditadura militar não tenha usado todo seu poder para se defender, mesmo estando consciente dos crimes que eram praticados sob a justificativa da defesa do regime.

Em alguns momentos, chegou a ficar baqueada pela própria violência que cometia.

A morte de Manoel Fiel Filho foi um desses momentos.

Tanto é verdade que, logo depois do assassinato, mais de dez presos no DOI-Codi –lá detidos de forma ilegal e submetidos a torturas—foram soltos sem nenhuma explicação, conforme registra o livro de Carlos Alberto Luppi.

“Após a morte de Fiel Filho foram imediatamente soltas dos xadrezes do DOi-Codi as seguintes pessoas: Manoel Dias Veloso, Geraldo Castro da Silva, José Teixeira da Silva, Sebastião de Almeida, Manoel Guilherme Neto, João Daniliauskas, Rivaldo Giraud, José Hamilton Rodrigues, Antonio de Albuquerque Oliveira Teixeira, Rosália Amado Andrade, Francisco Ramos Filho e Francisco Daniel de Souza.”

“Ele morreu para salvar todo mundo que estava lá dentro”, me disse a viúva de Manoel, dona Thereza Fiel, em entrevista realizada em Bragança Paulista, onde vive hoje. “O Geisel falou: Soltem tudo, não quero mais mortes aqui.”

Aparecida, primogênita de Manoel, hoje com 60 anos, conta que alguns dos presos que foram liberados na época eventualmente buscaram a família. “Agradecemos ao seu pai porque senão podia ter sido nós também”, disseram alguns, segundo Aparecida, que avalia: “Essa coisa toda parou na morte do meu pai”.

O calvário da família, porém, apenas começou naquele dia. A busca por justiça foi frustrada logo nos meses seguintes ao crime, com o arquivamento quase sumário do Inquérito Policial Militar. A família resistiu e, apoiada pelo advogado Belisário dos Santos Júnior, tentou o desarquivamente do processo: queriam que o governo assumisse o crime, encarasse suas responsabilidades.

Nada.

Márcia, a filha caçula, hoje com 56 anos, resume: “Tentamos entrar com um processo contra a União, porém nenhum advogado particular queria o caso. Todo mundo tinha medo. A minha mãe ficou sabendo que tinham entrado com um processo [caso Rubens Paiva], foi no mesmo tempo. A causa criminal. A gente queria saber como ocorreu a morte. Depois, os advogados abriram o processo no civil”.

Como apoio da Cúria Metropolitana e de dom Paulo Evaristo Arns, a família finalmente encontrou advogados que aceitaram enfrentar a ditadura nos tribunais. O processo foi julgado por um juiz que não se dobrou às pressões exercidas de forma sorrateira por agentes da ditadura.

A 35ª jornada da CORRIDA POR MANOEL busca lembrar o trabalho desses homens que, em lados diferentes do processo judicial, trabalharam com honestidade e respeito à lei.

Marco Antônio caminha ao meu lado, de calça jeans; no centro, as filhas de Manoel, Aparecida e Márcia - foto Eleonora de Lucena

Conversei com os advogados Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo, que até hoje militam juntos e dividem escritório na zona sul de São Paulo. A menos de dois quilômetros dali trabalha Jorge Tadeo Flaquer Scartezzini, o juiz que cuidou da ação impetrada em abril de 1979.

Por conta de suas atividades, não puderam participar da jornada –em outro dia da CORRIDA POR MANOEL, Marco Antônio foi a Bragança Paulista se reunir com a família de Manoel, somou-se à caminhada que fizemos na cidade.

Procurei trilhar percurso que advogados e juiz faziam naquela época: meu destino foi a região central da cidade, onde todos trabalhavam naquela época.

Era tudo pertinho. O escritório de Samuel e Marco Antônio ficava na avenida Ipiranga, no edifício Itália; a Justiça Federal estava instalada em um prédio na praça da República, na esquina com a avenida Vieira de Carvalho.

Samuel e Marco Antônio sabiam de cor o caminho, iam e voltavam quase de forma automática: foram eles os advogados do caso Herzog, representando a família do jornalista contra a União. As ações de um e outro foram diferentes, explica Samuel: 

"Quando a Clarice [Herzog] nos procurou, ela tinha muito claro na cabeça que a ação dela era política. Não era uma ação em busca de uma indenização em dinheiro. Ela pediu tão somente no processo Justiça, a declaração da responsabilidade da União pela prisão ilegal, pelas torturas, e pela morte do Vladimir Herzog. Quando chegou o caso do Fiel, essa questão se colocava, mas o papel político já tinha sido cumprido pela primeira ação; não precisava ser repetido. Isso era um risco processual. Não era muito claro que se pudesse entrar com a ação judicial apenas para obter essa declaração, não pleiteando a condenação na indenização. Havia o risco de dizerem: tudo bem, entendo tudo, mas você não tem direito a fazer uma ação somente por isso. Não havia razão para a Thereza correr esse risco no processo do Fiel. Por esta razão a ação deveria ser condenatória.  A União era declarada igualmente responsável pela prisão ilegal, pelas torturas e pelo assassinato do Fiel Filho, mas era condenada a indenizar. E a Thereza precisava. Thereza tinha uma condição econômica diferente da Clarice. Ela necessitava, pessoalmente ela necessitava, ela deixou de ter o concurso do salário do Fiel Filho para manutenção da família. Por isso a gente efetivamente entrou com a ação de declaração da responsabilidade, mas também de condenação da União para pagar uma indenização.”

Os processos era uma espécie de tiro no escuro. Os advogados sabiam que tinham razão, que houve crime, que o Estado era responsável. Mas o Brasil vivia sob o tacão da ditadura, ainda que ele começasse a dar sinais de fraqueza, como lembra Samuel:

“Era um estado quase de suspensão do processo. Você não tem nenhuma noção do que iria ocorrer. Você não tinha nem condições de avaliar a independência dos juízes, porque não tinham chegado os momentos de decisão do processo. A partir daqui é que a coisa mudou. Por dois motivos, primeiro a história do Brasil continuou andando, mesmo com o processo parado. O Regime Militar já estava apodrecendo. Você já se sentia com mais autoridade para fazer coisas que eram normais, tanto quanto respirar. Se você precisasse de autoridade para respirar. No estado de exceção você achava que era uma grande coisa fazer uma coisa que não era nada além do natural.”

Foi, portanto, preciso determinação para seguir adiante.

“Havia uma condição em princípio desfavorável ao andamento do processo, ao andamento regular, de acordo com a Lei. Em princípio era desfavorável, então dependeu muito da postura individual dos juízes que os processos tomassem seus cursos regularmente. Nós tivemos juízes pessoalmente independentes. Nesses dois casos, Herzog e Fiel Filho, os juízes atuaram com  independência.”

Lembrando o caso, o então juiz federal Jorge Tadeo Flaquer Scartezzini acha que não fez mais do que sua obrigação. Diz que não teve nenhum tipo de punição pela sua decisão de condenar a União; seguiu a carreira, virou desembargador, foi presidente do Tribunal regional federal da 3ª Região e ministro do Superior Tribunal de Justiça.

“O Scartezzini impediu que o processo fosse retardado por incidência, agiu com firmeza, deu prazos para a União. Ou a União se comportava no processo ou o processo andava de qualquer maneira. Foi fundamental. Não houve ameaças, que a gente saiba, e se aconteceram não surtiram o menor efeito”, afirma Samuel.

Hoje consultor da firma de advogacia em que atuam seus filhos, Scartezzini diz que não sofreu pressões oficiais durante o processo. Houve, porém, um caso curioso, ainda que sem consequências.

Edifício onde funciona o escritório de Samuel e Marco Antônio na década de 1970

Um dia chegou à minha sala um indivíduo que teve um corportamento muito estranho. Ele pede para falar comigo, eu o recebo, ele mostra uma carteirinha dizendo que era do Ministério da Guerra, e queria algumas informações a respeito do processo do Fiel Filho. Perguntei: O senhor é advogado? Qual o seu interesse nesse caso? Ele respondeu: “Eu estou aqui a mando do Comando do Exército”. Então lhe disse: “O senhor aguarde meia hora que eu vou ligar para o Comando do Exército para saber qual é a sua função, o que o senhor está pretendendo aqui, e o que eles querem, para depois atendê-lo”. Ele foi embora, fugiu. Quando vi, ele não estava mais lá.”

Quaisquer que tenham sido as pressões, elas não surtiram efeito. Ainda que não tenha sido esse o objetivo, a sentença condenatória do processo nº 1298666, registrada em 17 de dezembro de 1980, é um relato desabrido dos crimes da ditadura e das manobras que o governo fez para tentar fugir às suas responsabilidades.

Apesar do jurisquiquês que aparece em muitos pontos –e é de lei, digamos assim--, as 139 páginas podem ser lidas como se fossem uma grande reportagem, um livro em que a história vai sendo construída tijolo por tijolo até chegar à elucidação da trama e à punição dos culpados.


A pena, porém, só foi ser cumprida quase 20 anos mais tarde. Só em 1997 a viúva Thereza Fiel recebeu a indenização a que teve direito, conquistada na Justiça com muita luta e coragem –da família, dos advogados, dos juízes.

Em junho daquele ano, o jornalista Elio Gaspari publica em sua coluna na “Folha” uma nota dizendo que o dinheiro dos atrasados devidos já estava depositado. E resume assim a epopeia da família de Manoel Fiel Filho:

“Thereza Fiel enviuvou aos 42 anos, com duas filhas. Ajudada pela Arquidiocese de São Paulo, processou a União. Teve ganho de causa em 1980, mas não viu a cor do dinheiro porque juízes medrosos engavetavam o caso. A cada sentença a União interpôs um recurso, um deles demorou sete anos (...).”

Sofridos 17 anos depois de passada a sentença, Thereza recebeu seu direito. Ao saber da notícia, sua reação veio em uma só frase: “Vou me livrar do aluguel”.


 
CORRIDA POR MANOEL – 35ª etapa

Destino: caminhos das advogados da família Fiel, percurso de 7,40 km realizado em 1h36

Distância total percorrida: 372,06 km