ACIDENTE!!!

A IMPORTÂNCIA DO INDICADOR ESQUERDO       PARA A CORRIDA DE LONGA DISTÂNCIA
Este projeto de aposentado que volta à vida corrida deveria ter começado no dia primeiro de janeiro de 2015. Ainda tonto de sono, percorria trôpego as areias de uma praia catarinense, transformando cada passo em promessa de um novo dia.

Ledo engano. No longínquo final do ano passado, nos preparativos para as festas de passagem, um acidente mudou a minha vida –pelo menos, por alguns dias, talvez meses, quiçá para sempre (acho que não). E tudo culpa minha.

Que a maratona não perdoa a falha, o descuido, o desleixo ou mesmo a incompetência, já sei há muito tempo. Foi um aprendizado à base de cicatrizes. Descobri recentemente –e da pior maneira possível—que falhar ao preparar o jantar da família também pode impactar profundamente o ato de correr.

Estava eu nos prolegômenos de um assado, no dia 30 de dezembro de 2014, quando o desastre se deu. A enorme faca de churrasco escorregou nas gorduras da costela, derrapou na curva das nervuras expostas e só parou ao encontrar a carne macia e suculenta de meu dedo indicador esquerdo.

Foi só a pontinha, talvez um pouco mais, mas, com a força que vinha, a ponta da faca abriu um rasgão de bom porte, de onde espirrou sangue para inundar a cozinha.

Devo deixar claro: não foi acidente. Fiz tudo errado desde o início. Dava para ver que o enorme pedaço de costela não caberia inteiro no pirex escolhido para conter o assado. Mesmo assim, coloquei a carne lá,  no fundo já devidamente azeitado. Quando resolvi dividir a peça para que o cozimento fosse mais homogêneo e a apresentação do prato ficasse melhor, resolvi não perder tempo com coisas de somenos, como buscar uma tábua para corte…

Segurei o touro pelos cornos, digamos assim, sustentando com a mão esquerda a costela dobrada ao meio. Com a mão direita, segurei firmemente o facão novo, que estava para ser inaugurado naquele jantar, ajeitei o dito cujo sob a dobra da costela, com o corte para cima, e o empurrei com vigor e entusiasmo.

Deu-se o que se deu. O primeiro instante não foi nem de dor: foi de estupor. O que eu tinha feito?, perguntei a mim mesmo enquanto olhava o sangue a jorrar sem saber o que fazer. Conferi para ver se não tinha sido cortada alguma peça que fosse visivelmente muito importante, se o dedo estava inteiro, e tratei de colocar a mão sob um forte jato de água.

Dói, arde e não alivia em nada, não para a sangueira!. Coloquei o dedo para cima, para o lado, apertei o pulso: nada. Panos de pratos limpos foram ficando encharcados de sangue, enquanto eu resistia aos apelos da família para ir direto ao pronto socorro. Em instantes, percebi que aquilo não iria se curar sozinho, e lá fomos nós em busca de conserto para a c***** do cozinheiro.

A bem da descrição factual, não era um pronto-socorro, mas uma pequena clínica 24 horas –a única da localidade em que eu estava–, onde há 25 anos milita o mesmo médico, um simpático e conversador setentão de barba e cabelos muito mais brancos que os meus.

Não vou entrar em detalhes nem fazer acusações. O certo é que, graças aos cuidados iniciais –e ao bom trato posterior que eu mesmo dei ao pobre dedo–, o ferimento não infeccionou nem apodreceu nem fedeu nem supurou. Mas também não ficou curado, pois –e isso o médico do pronto atendimento não percebeu-- o problema não era apenas o corte, mas o que tinha sido cortado.

Ao rasgar pele, carne e vasos sanguíneos, a faca também atorou um dos tendões que são os responsáveis pelos movimentos dos dedos. Em consequência, fiquei incapaz de controlar a ação da ponta do indicador da mão esquerda: ele fica lá, impávido colosso e, por mais que eu comande: Dobra! Dobra!, continua em riste.

Nunca antes na história deste corredor eu tinha percebido a importância da pontinha do indicador esquerdo. O pior é que os outros dedos, acostumados à garbosa companhia, demoram um tempão para aprender a assumir funções por ele exercidas: passar fio dental, por exemplo, se transforma numa ginástica;  acionar o desodorante vira verdadeira musculação para o dedo médio.

Pode parecer risível, mas tente para ver como é.

Bom, resumo da história. Uma semana depois, já em São Paulo, encontrei uma turma de ortopedistas que, antes mesmo de me cumprimentarem, já tinham percebido o defeito do dedo. Mal eu sentei à mesma, recebi o diagnóstico: tem de operar. E com urgência. 

Já havia se passado tempo do acidente (não foi acidente, foi erro), cada hora era um prejuízo a mais para as chances de recuperação, pois o tendão atorado estava em processo de cicatrização (dói bastante, o dedo incha, a mão fica avermelhada, quente…). Se isso se consolida, às vezes nem uma simples cirurgia resolve; o processo de conserto pode envolver várias operações.

E foi assim que voltei a uma sala de cirurgia –as outras operações foram há mais de 40 anos e já estão perdidas na memória, ainda que o corpo carregue suas cicatrizes. Tinha medo da anestesia geral e mais medo ainda da dor que viria depois  –o cirurgião me garantiu que haveria dor no ferimento…

O pior é que isso novamente me deixou sem poder treinar. Já não bastou a semana que fiquei de molho enquanto o ferimento começava a fechar (fiquei com o dedo protegido, entalado, sem movimento –tudo errado, segundo os médicos que agora me atendem), depois da cirurgia fiquei mais uma semana sem ação.

Depois,  recomeça aos poucos, de forma supercontrolada. E a mão fica imobilizada. Qualquer movimento do dedo provoca o rompimento dos pontos, novo estouro do tendão, com prognósticos sobre os quais nem é bom pensar. Será um mês de tala, sempre sob essa ameaça.

Vai ser um saco. Vou engordar mais ainda. O humor, a autoconfiança e a autoestima, que já não estão lá essas coisas, vão para a sarjeta, nuvens negras dominam o horizonte mental e é melhor nem continuar escrevendo sobre essa seara…

O pior é que a gente não aprende nada com isso. “Viu, você deve cortar a carne sobre uma tábua”, diz alguém; “o fio da faca deve ficar sempre na direção oposta ao corpo”, recomenda outro. Alguém acha que eu não sabia ou não sei isso? Durante 57 anos nunca me feri manuseando equipamentos perigosos nem deixei cair objetos cortantes, pontiagudos ou pesados. Agora, errei e tenho de conviver com isso.

A experiência está me ajudando em um ponto, talvez. Posso entender com mais clareza o esforço que fazem os atletas com necessidades especiais. Vendo o quanto um defeito na ponta do dedo indicador da mão esquerda impacta minha habilidade de atuar, correr e viver, posso ter uma pálida ideia do que sofrem e de quão enorme é a conquista dos amputados e de todos os homens e mulheres que enfrentam no dia a dia a luta por uma vida plena, mesmo que seus corpos não sejam inteiros. A todos eles, meu respeito e admiração.

VOLTA AO ASFALTO COMEÇA NA CAMA DO HOSPITAL

Pois então, estimado leitor, prezada leitora, entrei na faca. Bisturi, para ser exato.

Com medo ou sem medo, foram menos de 24 horas entre a consulta que confirmou o rompimento de um dos tendões de meu dedo indicador esquerdo e a cirurgia de reconstrução do dito cujo.

Sem ele, a gente fica com o dedo duro. A pontinha não se mexe, e o resto de conjunto sofre as consequências: a força é menor, assim como a precisão dos movimentos.

A cirurgia foi um sucesso. O doutor João Carlos Nakamoto, do Instituto Vita, habilmente capturou os cotos do tendão rompido (abaixo, um dos momentos da cirurgia), deu-lhes um nó nos cornos, colocou tudo de volta e fechou a bagunça.

Fiquei sedado todo o tempo e abobado a maior parte do dia, depois que acordei.
O problema é exatamente o depois. Não estou inutilizado, mas vou ficar ainda pelo menos uns dez dias sem correr. Depois, vai ser tudo muuuito devagar.

É que o processo de recuperação é muito complicado: qualquer coisinha, o tendão rompe de novo e todo o trabalho se perde. Há que fazer muita fisio e tomar muito cuidado para não acionar a área atingida.

Por isso, o processo de recuperação começou pouco depois de eu acordar da cirurgia, com a mão e o punho imobilizados. Tenho de aprender a não mandar ordens de movimento para o local atingido. Quanto mais quieto, por enquanto, melhor. Daqui a pouco a coisa muda.

A INCRÍVEL E AMEDRONTADORA EXPERIÊNCIA
DE CORRER COM O BRAÇO ENTALADO

Pois corri. Os pontos no local da cirurgia estão grossos, escuros de sangue velho. A mão toda anda meio boba, e o ferimento de vez em quando deixa escapar algumas gotas de sangue. Qualquer movimento errado pode jogar por terra as conquistas feitas até agora. E eu não sei exatamente o que qualifica como movimento errado. Mesmo assim, fiz no dia 13 de janeiro minha primeira corrida como ex-operado, paciente cirúrgico, o homem dos cotos suturados, do tendão.

Foi uma aventura, mas programada, planejada e devidamente autorizada pelo cirurgião João Carlos Nakamoto. “É melhor a gente botar logo você para correr, antes que a depressão prejudique a recuperação”, ele disse (não gravei, mas a frase foi mais ou menos essa).

De fato, eu já estava mais por baixo que c* de cobra (perdoe mon fraçais, s`il vous plait). Não tanto pela dor, mas pela vergonha e humilhação de ter me cortado do jeito que me cortei. 

O cirurgião permitiu que eu saísse para o asfalto, mesmo entalado, mas fez um série de advertências.

Não há nenhuma certeza de que o dedo vá recuperar os movimentos perdidos. Os cuidados na assepsia do local e a dedicação aos exercícios de reabilitação, executados corretamente e amiúde, é que vão dizer. Erro para trás, erro para a frente, excesso de força, força de menos, e o tendão rompe ou cola em algum lugar indevido. Fica tudo com dantes ou pior.

Por isso, desde o dia da cirurgia, na semana passada, estou com uma tala que imobiliza a mão e o punho. Ela vai ficar comigo pelos próximos três meses, em que vou ter de aprender a viver, trabalhar e correr com apenas uma mão ativa.

Os exercícios começaram na segunda --quatro dias depois da operação, portanto. À noite, quase não dormi pensando na corrida que eu faria, imaginando o trajeto, escolhendo a roupa que iria usar, pensando em como fazer para levar o relógio –não cabe no pulso esquerdo, e não teria como acioná-lo se o colocasse no direito. Preocupações que os donos de duas mãos ativas nem sequer sonham existir.

São muitos os problemas e os cuidados. Ao acordar, por exemplo, não posso me espreguiçar. Isso tensiona o antebraço, onde começam os tendões da mão, e qualquer tipo de esforço do tendão está proibido. Numa madrugada, parei o movimento em cima do laço: o braço direito já estava se estendendo, o esquerdo começava a se mover, eu ia tentar fechar a mão sem lembrar do ferimento.

Levantei e tentei fazer sozinho o máximo possível. Escovar os dentes é moleza, todos nós usamos apenas uma mão para isso. Mas como um maneta coloca a pasta na escova de dentes? 

Eu primeiro encostei a escova na borda da bacia da pia, usando a caixinha de fio dental para mantê-la na posição. Depois deitei o tubo na pia e fui pressionando para que a pasta ficasse bem na ponta. Daí segurei o tubo com dois dedos e usei um terceiro para erguer a tampa. Finalmente, pressionei o conjunto para que a pasta saísse.

Até agora não consegui ser preciso nisso: sempre que corto o fluxo, cai um pouco de pasta para os lados, sujando a pia. Para limpar, uso num pedaço de papel higiênico: cortá-lo com uma mão só também é um exercício de paciência…

Fazer o chá também é fácil, desde que a gente fique atento e tome todos os cuidados, fazendo uma operação de cada vez: pegar a chaleira, levar a chaleira para a pia, tirar a tampa da chaleira, abrir a torneira, fechar a torneira, colocar na chaleira o sachê de chá, tampar a chaleira, levar a chaleira ao fogão, acender o fogo…

Aliás, um salve geral para quem inventou o mecanismo de acendimento automático do fogão! Cada vez que vou para a cozinha e tenho de ligar o fogo nessa minha nova condição, lembro-me de uma sensacional entrevista feito pelo pessoal do “Pasquim” com um sambista carioca.

É, eu sou velho assim, de ter lido o “Pasca” no original. E também para ser incapaz de recordar o nome do cantor ou compositor entrevistado. O certo é que se tratava de um sujeito sem braço, pois o detalhe que me ficou na memória é que, a certa altura da entrevista, o artista deu “uma sensacional demonstração de como acender um fósforo com uma mão só”.

Nem sonho em chegar a esse grau de habilidade, mas pretendo, pelo menos, ser capaz de amarrar os cadarços dos tênis. Quem sabe um amigo meu, que não tem parte de um braço e é triatleta com sonhos paraolímpicos, possa me dar umas aulas…

Pois tirando a tal amarração, consigo me vestir sozinho, descascar banana com os dentes e os dedos e preparar minha meleca matinal (banana amassada com granola). Assim fiquei pronto para meu primeiro treino, no dia 12 de janeiro.

Deveria ser mais curto e menos intenso do que sessões anteriores, para que eu pudesse prestar atenção no braço, cuidar do dedo e garantir (???!!!) que o tendão não sofresse nenhuma tensão involuntária nem recebesse ordens descuidadas.

Foi muito bom. Comecei caminhando 400 metros em ritmo acelerado, completando o primeiro bloco de 1.500 m com um trote leve de 1.100 m, no asfalto plano e razoavelmente seguro do parque Villa Lobos, na zona oeste paulistana.

Não sei se o corpo todo se compadeceu do dedo, o certo é que não tive dores outras. Fiz o segundo bloco descansado e até me desafiei no terceiro –coisa que me era proibida, mas como correr sem criar metas, contendas, lutas consigo mesmo? Corri um dos quilômetros “limpos” (sem interferência da caminhada) em 6min21, e meu relógio novo, que carreguei na mão direita, me presenteou festejando o que ele disse ser um novo recorde pessoal para a distância.

Bobagem! Meu prêmio estava no meu suor….

Vamo que vamo!!!

5 comments:

  1. Se para Freud "às vezes um charuto era apenas um charuto", para nós corredores, um dedo é bem mais que um dedo, rs. E bem mais necessário do que supomos!
    Boa recuperação!

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