5.2.17

Psicóloga debuta no asfalto e fala sobre depressão em idosos

Foi a primeira vez dela.
Primeira vez mesmo, tipo: nunca antes na história deste país ela tinha feito tal coisa.
Não sabia se conseguiria. Na noite 
anterior, acalentou pensamentos de fuga: “Vou ligar para ele e dizer que estou doente, que estou indisposta”.
Mas veio. E foi.
Em pleno vigor de seus bem vividos 56 anos, a psicóloga Márcia Scazufca, doutora em psicologia com pós-doutorado na unidade de psiquiatria da Universidade de Bristol, mestre em epidemiologia e em psicologia social, colocou os calçados de corrida e veio para o asfalto.
Na manhã cinzenta da última quinta-feira, nos encontramos na rua Oscar Freire em frente à saída da estação Sumaré do Metrô, tradicional ponto de partida de minhas jornadas neste programa jornalístico-esportivo-cultural que usa a corrida para debater questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos maiores de sessenta anos.
Saímos para fazer uns dez quilômetros, mais caminhando que correndo, mas com portentosos blocos de trotes, trezentos metros de cada vez. A corrida pouca não era por ela, mas por mim, que ainda me recupero de uma fratura por estresse no fêmur esquerdo.
Para quem nunca tinha corrido antes, Márcia tirou de letra os desafios do asfalto, das calçadas pedregulhosas, das paradas abruptas em sinais de trânsito e todos os outros perrengues e alegrias que integram o maravilhoso pacote das corridas e caminhadas nas ruas de São Paulo.
Está certo que ela, santista de nascimento, tem as caminhadas quase como segunda natureza, desde a infância batendo pernas no calçadão da cidade praieira. Mesmo assim, há que elogiar sua galhardia enfrentando as ondulações da avenida Sumaré na sua corrida de debutante.
Mas não foi (apenas) para propiciar a Márcia uma nova experiência esportiva que a convidei para participar desse projeto de velho corredor (quase-velho, ainda faltam alguns dias para que eu atinja a provecta idade de sessenta anos, portal oficial da velhice).
Não. Pesquisadora científica atuando no Laboratório de Psicopatologia e Terapêutica Psiquiátrica do Hospital de Clínicas da USP, Márcia vem dedicando anos de trabalho acadêmico a estudos sobre a condição de vida dos idosos.
Sua pesquisa mais recente, que está prestes a ser finalizada, busca validar um método de baixo custo para identificação e tratamento da depressão entre os maiores de sessenta anos.
“O Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes. Se você considerar que dez por cento são idosos, é uma população de 20 milhões de pessoas. Você pode imaginar que, desses 20 milhões de idosos, tem de todos os jeitos possível. Se eu falar que dez por cento tem depressão são dois milhões de pessoas. Para tratar essa quantidade de gente, preciso de uma arma forte”, me disse ela em entrevista realizada em seu escritório no HC, dias antes de nossa corrida.


Não se trata de um mal apenas dos idosos ou do Brasil: a depressão é tida como o mal do século por organismos internacionais de saúde. Em 2014, eu cobri seminário realizado em Londres em que o Kofi Annan, ex-secretário geral das Nações Unidas, afirmou:
"A depressão atinge hoje quase 7% da população mundial –cerca de 400 milhões de pessoas. Incapacita os atingidos pela doença, coloca enorme peso em suas famílias e rouba da economia a energia e o talento das pessoas."
Isso cobra um alto preço da economia, pois, segundo Annan, em 2010 os custos diretos e indiretos da depressão eram estimados em US$ 800 bilhões (mais de R$ 2,4 trilhões) no mundo todo. "E, de acordo com as previsões, esse custo deve mais do que dobrar nos próximos vinte anos", alertou.
Os números apontam que a abordagem tradicional, superespecializada, não tem chances no combate à doença, que já ganhou ares de epidemia internacional. “Não existem psiquiatras no Brasil nem no mundo em quantidade suficiente para tratar as pessoas com depressão. Nunca vai existir. É um número muito grande de gente”, afirma Márcia Scazufca.
Pensando nisso e nos custos do tratamento que ela e sua equipe bolaram uma nova forma de ataque ao mal, convidando para o tratamento profissionais não especializados, mas treinados e com supervisão de especialistas. Entram em cena os agentes comunitários de saúde que atuam no programa Estratégia de Saúde da Família.
“Nosso programa foi todo desenhado e planejado para ser feito na atenção primária, pela atenção primária”, diz Márcia. “Eu penso, desenho, planejo, conheço o sistema, mas quem atende é um funcionário do sistema de saúde. Uso a mão de obra existente. É um programa adaptado ao programa Saúde da Família, que agora se chama Estratégia de Saúde da Família.”
O primeiro problema que o programa procurou atacar foi a identificação dos idosos com depressão.
“A depressão é uma doença que pode ser muito silenciosa. A pessoa fica quietinha, e muitos acham que é normal o idoso quietinho, as pessoas assumem que é assim porque ele é velho. Ele já se aposentou, está na dele, quieto.”
O estigma da velhice se combina com o estigma da depressão para criar uma cortina de fumaça sobre a doença entre os maiores de sessenta anos. É esperado que o velho seja rabugento, cheio de manias, que fiquei em silêncio, que não se mexa, fique só vendo televisão...
É bem possível que, na maior parte dos casos, aconteça assim mesmo. Mas em um número considerável de situações, atingindo cerca de dez por cento da população maior de sessenta anos, trata-se de uma doença, que pode ser identificada e tratada, dando à pessoa mais qualidade de vida.
No programa ProActive, criado por Márcia e seu colega pesquisador Ricardo Araya, London School of Hygiene & Tropical Medicine, os agentes comunitários de saúde são treinados para identificar a depressão e para fazer um tratamento básico, que visa mudar a atitude, o comportamento da pessoa deprimida.
É o que Márcia chama de ativação de comportamento. “A gente vai costurando isso devagarzinho. Aos poucos, para chegar ao objetivo, ajudar o idoso a entender que o que ele faz pode ajudá-lo a se sentir melhor ou pior. Se não fizer nada para se sentir melhor, ele se sente ainda pior. Se a pessoas não faz nada para se sentir melhor, ela fica ainda mais triste.”
A pesquisa do ProActive foi realizada em duas Unidades Básicas de Saúde da periferia de São Paulo, nos altos da zona norte da cidade. Depois de mais de dois anos de preparação, o programa entrou em campo no ano passado, como Márcia conta a seguir.
“Escolhemos aleatoriamente 800 pessoas com 60 anos ou mais. Foi feito sorteio, cada unidade tem mais de 2.000 idosos. Desses sorteados, o meu grupo de pesquisa foi na casa deles ver quem tinha depressão. Incluímos no grupo controle, ao qual não demos tratamento do nosso projeto, 25 pessoas; no grupo de tratamento, nós incluímos 33 pessoas.”
Grupo controle, em pesquisa, significa aquele grupo de pessoas que não recebe o tratamento ou o medicamento que está sendo testado no projeto. No caso, em uma das UBS, as pessoas identificadas com depressão receberam atendimento tradicional: “Nós apenas informamos quem eram e deixamos que a UBS tratasse como sempre trataram”, diz Márcia.
O programa ProActive foi aplicado no chamado grupo de intervenção. “Criamos um programa de atendimento, que se baseia em alguns pilares: uso de tecnologia, colaboração entre os profissionais, tratamento em etapas (recebe mais quem precisa mais) e mudança de papéis. Treinamos 11 pessoas,  que faziam o atendimento com ajuda de um tablet. Eram auxiliares de enfermagem e atendentes comunitários de saúde treinados para usar o programa que nós desenvolvemos.”
No computadorzinho de mão, o atendente achava questionário que aplicava ao idoso e também atividades para realizarem em conjunto, além de vídeos curtos que serviam de estímulo para as conversas, sempre visando modificar o comportamento –de apático a ativo.
O tratamento durou cinco meses, e cada pessoa recebeu oito ou onze visitas. Todos os atendimentos começaram com três encontros semanais. Dependendo dos resultados dessas sessões, o idoso participava a seguior de mais cinco ou mais oito encontros, a intervalos predeterminados, em que cada sessão seguia um roteiro estabelecido pelos pesquisadores.

Avenida Paulo 6º (con tinuação da Sumaré), onde a psicóloga Márcia Scazuf teve um aperitivo do que é correr nas ruas de São Paulo (fotos Rodolfo Lucena)

Os resultados foram, no mínimo, estimulantes. Praticamente todos os atendidos pelo grupo de intervenção mudaram de comportamento, saíram da depressão –em comparação, praticamente não houve alteração na situação dos atendido no grupo de controle.
E olhe que esse não era exatamente o objetivo da pesquisa –testar a efetividade do tratamento será objetivo de um trabalho muito maior, que ainda está em preparação e deverá envolver mais de 1.400 pacientes.
No programa atual, o objetivo era ver se um projeto como esse era factível, exequível, se era possível treinar atendentes de enfermagem e agentes comunitários de saúde para fazer o trabalho, se os pacientes iriam aceitar esse tipo de atendimento, como seria o uso da tecnologia...
A tudo, as respostas foram positivas. Agora é partir para a nova etapa, de validação do método de tratamento e verificação de custos, tendo como objetivo uma futura incorporação do método pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Donde se conclui que a psicóloga Márcia Scazufca está bastante satisfeita com seu trabalho. E também ficou bem animada com sua estreia no mundo das corridas, alegre como uma debutante –o que, de fato, era.
O exercício físico, por sinal, é um dos métodos, uma das ferramentas para combater a depressão, não só entre os idosos, mas em qualquer idade. Essa é uma das observações que Márcia fez ao longo da entrevista que realizei com ela ao final de nossa corrida. A conversa foi transmitida ao vivo, mas eu guardei cópia do vídeo especialmente para você não perder nenhum detalhe dos ensinamentos e observações feitas por Scazufca. Veja a seguir.

VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de quatro de fevereiro de 2017
9,50 km realizados em 1h35min58

Acumulado no projeto 600 aos 60
544,34 km percorridos em 108h53min34

Acumulado no projeto 60M60A
321,14 km percorridos em 61h54min41

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