1.4.16

Praça da Sé acolhe e aquece o coração dos brasileiros

Correr chorando é difícil.

O choro mexe com as entranhas do vivente, remexe a musculatura, estressa os sentimentos, cavoca o estômago, retorce a boca, faz o nariz correr, avermelha os olhos. Parece que quer transformar o corpo todo em lágrima.

A corrida puxa o sangue para as pernas, cobra atenção do olhar, exige controle do abdômen, sacoleja as coxas, exaure a disposição, vaza gordura em suor, avermelha os olhos. Quer transformar o corpo todo em movimento.

Cada um, choro e corrida, quer o corpo todo para si mesmo, ciumentos que são de músculos, entranhas, esqueletos, pensamentos e emoções. Donde, como se conclui, correr chorando é difícil.

Na Paulista, na manhã de hoje, corri chorando. Devia ser uma peça uma tanto assustadora de ver –curiosa, pelo menos--, cabeludo, barbudo, com esgar de sofrimento, nariz pingando, olhos vazando, garganta fazendo um som que nem sei bem qual é.

Também não sei por que chorava: “São tantas emoções”, diria o meu amigo Roberto Carlos.

De fato.


Às 6h30 de hoje fiquei sabendo que tinham fracassado os meus planos para o dia de hoje, a 39ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, penúltima das quarenta homenagens corridas e reportadas ao operário metalúrgico assassinado pela ditadura militar e ao combate pela construção da democracia no Brasil.

Meu convidado não poderia caminhar comigo, eu precisava criar outros planos.

Já tinha imaginado essa possibilidade –afinal, a noite anterior fora de luta no Brasil inteiro, manifestações gigantescas contra a tentativa golpista de impeachment da presidente Dilma se espalharam pelo Brasil como rastilho de pólvora incendiando os corações dos homens e mulheres de bem deste país.



Militante das causas do povo, meu convidado provavelmente tinha varado a noite nos eventos e reuniões pós-mobilização. Então saí para correr, proto para trazer outras histórias, mas disposto a deixar o coração solto, os pensamentos voarem, a imaginação se espraiar pelo asfalto, como é próprio das corridas de longa distância.

Logo de início, descansado, parei para admirar colorido grafite num murão da Doutor Arnaldo. E queimei o chão, partindo para correr como cachorro solto no campo.



Só quando cheguei à avenida Paulista comecei a botar meus pensamentos em ordem, tratando de montar na minha cabeça o mapa para chegar a um lugar que lembrasse a trajetória de meu homenageado.

Seria legal passar pela Sé, calculei. E a praça foi se agigantando na minha mente, as lembranças da manifestação da noite anterior ocupando minhas passadas, o Hino Nacional cantado por 60 mil vozes reverberando ainda nos meus ouvidos, arroucando minha voz, arrancando de mim lágrimas de alegria.

Pois a gente chora por tudo: de alegria, de dor, de esperança, de saudade, de ver o tempo passar. Eu choro mais ainda pela emoção do heroísmo, de ver o povo se levantar, estar ao lado de gente que faz a hora, não espera acontecer, como diz a canção.

E me vieram à mente as muitas Sés, a de Herzog e do Movimento Contra a Carestia, a da Anistia e de Alexandre Vannucchi Leme, a Sé onde foi acolhida a família de Manoel Fiel Filho.

Assim, a praça da Sé, da catedral transformada em casa do povo pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, virou o personagem dessa jornada de hoje, de quase-despedida da CORRIDA POR MANOEL.

Enquanto me decidia, corria. Já quase no fim da avenida Paulista –de fato, o começo, mas é o fim para quem vai daqui para lá--, passei por um boteco que me avivou recordações de outro campeão da lutas populares, agitador do campo, guerrilheiro na cidade, diplomata nos gabinetes.

Várias vezes cheguei àquela esquina podre e suado, depois de quilômetros pelo centro da cidade, pelo Cambuci e pela Liberdade. Para mostrar –a quem, me pergunto sempre?—que não fraquejava, completava o treino com uma das subidonas que leva até a Paulista.

“Ué, que você tá fazendo por aqui”, me perguntava Nélson Chaves dos Santos nas nossos raros encontros –já se iam longe os tempos em que tínhamos militado os dois no extinto MR-8, produzindo o "Hora do Povo" e usando o jornal para infernizar a vida da ditadura militar.


Com a redemocratização, eu segui meu caminho, ele continuou firme e forte no partido.

Conheci Nélson muito antes de saber quem era ele. Nosso encontro na vida foi a prova de um filosófico ditado que me acompanha desde os tempos de ginásio, ensinado pelo professor de português: “Se não me tivesses encontrado, não me estarias procurando”.

Nélson Chaves entrou na minha vida pelo jornal. Em 1979, eu era redator na rádio Continental, escrevia textos para o jornal “1120 é notícia” (o número se referia à posição da emissora no dial) e tinha criado o boletim “Brasil-il-il”, que acompanhava o andamento do projeto de anistia.

Muitas das notícias que escrevia tinham Nélson como personagem, pois ele havia sido preso em março, numa evidente contradição aos rumos de redemocratização que o Brasil tomava.

Não era a primeira prisão daquele magricelo irrequieto, militante das causas do povo desde os 14 anos, apesar de ter nascido em berço esplêndido, filho de fazendeiro.

Logo depois do Golpe de 1964, com 19 anos, foi processado por causa de seu trabalho na organização de sindicatos rurais e grupos de camponeses.

Não deu em nada. Seguiu buscando organização com quem trabalhar. Ligou-se à Polop, em busca de ação, mas saiu frustrado, como disse em entrevista a Eleonora de Lucena:

“Entrei em 65 e fiquei seis meses. Fui expulso. Descobri que era um bando de charlatões; falavam em luta armada, mas não faziam porra nenhuma. O meu negócio era ir para o cacete. Já vim do interior com essa ideia. Do meu grupo do interior, éramos 20, 17 foram para a luta armada.”

Ajudou a construir a VPR do capitão Carlos Lamarca, embarcou em muitas ações, foi preso, torturado quase até a morte –salvou-se porque saiu com o grupo de presos políticos trocados, em 1971, pelo embaixador suíço.

Rodou alguns anos no exterior, mas não aguentou ficar longe do Brasil. Apesar dos tempos bicudos, voltou bem antes da abertura democrática e se somou ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro.

No mesmo ano em que foi personagem de meu programete de rádio tornou-se também uma espécie de padrinho espiritual de meu casamento.

Libertado na anistia, imediatamente se somou à luta contra a ditadura e passou a trabalhar na ampliação do MR8 –era um dos que fazia contato para atrair a Organização Comunista do Sul, onde eu militava.

Adora jogar conversa fora, se meter na vida dos outros, tomar umas pingas. Certa feita, estava fazendo tudo isso depois de algum encontro clandestino entre 8 e OCS, e calhou de eu ser o parceiro de bate-papo.

Quando soube que eu estava de casa montada com minha parceira, perguntou logo para quando era o casório. Instituição falida, lhe disse eu, ao que ele me deu um sermão em regra, desmontando argumentos e apontando o caminho da concórdia com a família da companheira.

Chegando em casa, mal abri a porta e fui logo dando a notícia: “Eleonora, vamos nos casar!” Estamos aqui até hoje, com papel passado, comunhão de bens e filhas batizadas.

Nélson morreu menino, com 68 anos, em 2014. Sempre que, como hoje, passo naquele bar no nascedouro da avenida Paulista, lembro-me dele com carinho e sinto orgulho de ter tido como amigo um herói brasileiro.

Reconfortado pelas lembranças, desci a Vergueiro rumo à praça da Sé; numa esquina, encontro pichação bem linda, poesia concreta pintada nos muros paulistanos.



Reviver verde rever verdade ou qualquer outra combinação, tudo é permitido pelas sílabas que servem como blocos de armar edifícios –os tijolinhos que foram por décadas alegria das crianças construtoras.

Vista por trás, a praça da Sé é em primeiro lugar a catedral. Que, vista por trás, de quem sobe da Liberdade para a praça João Mendes, em primeiro lugar é torre, bico fino no alto do prédio monumental. Por dentro, a igreja é serena, sisuda; por fora, é generosa, amazônica.



Rodei o contorno inteiro da praça, abracei a catedral com minhas passadas, lembrei a multidão que tomava a praça na noite anterior, me lembrei das outras multidões.

Muitas delas, multidões, foram replicadas na minha terra. No Rio Grande do Sul, o Movimento Contra a Carestia teve minha mãe como militante ativa, motivadora de lutas.

Dona Cecília Reckziegel de Lucena (1930-2014) disse presente, aliás, em tudo quanto foi luta popular que lhe passou pela frente, foi motor e coração na campanha da anistia, andava pelas favelas e, do mesmo jeito amorável, encontrava alguns dos campeões da liberdade, como o senador Teotônio Vilela.

“Ela estava entregando as flores como uma homenagem nossa, do 2º Zonal do PMDB, ao Teotonio”, conta Jussara Cony, que então era vereadora e dirigente daquele zonal.

“Numa articulação política ampla, eu me tornei presidenta e o Caio Lustosa vice, com apoio do Andre Foster, do Lauro Hagemann, da Gladis Mantelli, do MR8 e dos comunistas como eu. Cecília fazia parte da direção que elegemos, e trouxemos o velho, amado e guerreiro Teotônio para uma grande atividade, parte da Caravana da Democracia para impulsionar a luta redemocratização.”









Jussara, que mais tarde se elegeu deputada estadual, lembra das atividades de Cecília. Ao ver a foto, escreveu mensagem para mim:

“Tua mãe era uma das principais militantes na luta comunitária, das mulheres e na luta política maior. Tua irmã Teresa também. Tua mãe conseguia unificar, ampliar, numa dedicação cotidiana. A gente militava tri bem junto. Lembro de que nos momentos de embates, a gente conversava muito pra encaminhar da melhor forma. Me ensinou muito!”

O encontro de Cecilinha com Teotônio foi uma das últimas jornadas da andança nacional do Menestrel das Alagoas, que morreu meses depois, no final de 1983.

Latifundiário, fundador da UDN nas Alagoas –o mesmo estado de Manoel Fiel Filho—e apoiador do Golpe de 64, Teotônio Vilela aos poucos encontrou o caminho do bem. A partir de 1974, tornou-se ativista do processo de abertura democrática; depois, da redemocratização e da anistia.

O Menestrel das Alagoas foi figura empolgante em palanques montados na Sé, que também tiveram as presenças gloriosas, enormes, retumbantes de carinho de Therezinha Zerbini e Margarida Genevois.


A catedral só fez humana, porém, pela mão e pela palavra de Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo de 1970 a 1998. 

“As coisas no Brasil teriam sido muito piores se não fosse dom Paulo, porque ele era um homem de coragem, enfrentava os militares, não tinha medo e apoiava aqueles que se comprometiam com a paz e com a justiça”, me diz Margarida, que trabalhou durante 25 anos com o cardeal, pioneira e liderança da Comissão de Justiça e Paz.

Dom Paulo ia aos presídios, acolhia militantes clandestinos, soltava o verbo quando era preciso, conclamava ao silencia quando era prudente, mas não deixava nunca vaga a trincheira de luta. 

“Ele era como uma estrela, mostrando o 
caminho para todos que se aproximavam dele”, resume Genevois, ela também uma luminosa estrela.

Pensando nelas todas, Margarida, Cecília, Therezinha, lembrando dom Paulo e a multidão que toma a Sé nos dias de hoje para combater o novo golpe que se arma contra o povo, segui minha jornada.

Parei no largo São Francisco, em frente às arcadas da Faculdade de Direito.



Ali, em oito de agosto de 1977, Goffredo Telles Júnior leu a “Carta aos Brasileiros”, documento assinado por emérito juristas que pôs a nu a ilegalidade dos poderes ditatoriais.

“Queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade”, diz o texto.

Afirma também: “Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia”.

E conclui: “O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”.

Lamentável notar que alguns que assinaram a Carta estão hoje do lado da ilegalidade e participam de manobras que tentam golpear governo eleito pelo povo, conspiram contra o Estado de Direito. São as voltas que no mundo dá.

Um punhadinho de vira-casaca não atrapalha minha jornada, que logo é iluminada pela força de jovens militantes entrincheirados em barracas na praça do Patriarca. Fazem ali vigília cívica, rodeados por faixas e cartazes que trazem consignas como “Não vai ter golpe, vai ter luta” e “A justiça não pode ter um lado”, sem falar na placa onipresente que diz “Fora Gllobo!”.



É apenas uma amostra da disposição de luta que se espraia pelos sindicatos, entidades estudantis, movimentos populares. Enche de alegria o peito de um brasileiro corredor.

Com mais de doze quilômetros no lombo, sigo direto e reto para meu destino final da jornada de hoje, o prédio da Cúria Metropolitana, no elegante bairro de Higienópolis.

É lá que estão guardados os arquivos da igreja, ficam lá os registros que constroem a memória. Que também é vida e é corrida.


CORRIDA POR MANOEL – 39ª etapa

Destino: praça da Sé, percurso de 13,91 km, percorrido em 2h09

Distância percorrida até agora: 416,11 km






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