5.6.15

Dois anos mais velho, aposentado volta a enfrentar a subida da Brigadeiro


Quando a gente chega a certa idade, a um certo conjunto de males do corpo, a um certo conjunto de atribulações psicológicas (que são também do corpo, por supuesto), há que aceitar a vida como ela é, um minuto de cada vez, metro a metro, sabendo que qualquer um, minuto ou metro, pode guardar surpresas desagradáveis. O que não nos deixa mais preparados ou em melhores condições para enfrentá-las, pois a natureza da surpresa é (...) ser surpreendente.

Eu cá comigo estou surpreso porque chego ao final de uma sequência de semanas com volume crescente de treinos, sem dores de monta, sem cansaço exagerado, sem músculos arrebentados, sem quase nada para reclamar.

Ao contrário, venho festejando cada dia de treinos, adorando os longões que me rejuvenescem e entusiasmam, renovam minha disposição de explorar a metrópole paulistana.

A cada treino, saio de casa com a quilometragem na mente, sem destino –o percurso vai se formando no asfalto, sigo meu nariz, evito o trânsito, encaro um subida, aproveito uma sombra, vou no contrafluxo.

Nestes dias de quase feriadão, fiz vários treinos bacanas, encarando a poeira paulista e suas idiossincrasias.

O mais legal foi o do feriado propriamente dito, pois aproveitei o Minhocão, apreciando a multitude de gente que por lá circula quando o elevado está fechado para o trânsito de veículos  --se você não é de São Paulo, esclareço: trata-se de um superviaduto de mais ou menos 3 km de extensão que corta parte da área central da cidade.

Cheguei por lá quando o sol já ia alto. Muita gente circulando de bicicleta, levando os cachorros para passear ou simplesmente sacudindo o esqueleto.

Eu gosto de ficar bisbilhotando a vizinhança, olhando as janelas, tentando imaginar como é a vida dos que vivem por lá. De vez em quando, alguém aparece.



Numa das janelas, um grupo de artistas fazia uma performance sobre a cidade –não parei muito tempo, não consegui entender direito o que rolava. Até parecia interessante, mas os caras não estavam conseguindo atrair muita atenção naquela hora: só eu parei para fotografar (pode ser que, mais tarde ou mais cedo, houvesse público).

O que tinha em profusão era gente tirando foto. Acho que algum curso de fotografia soltou uma turma por lá para pegar cliques da cidade... 

Havia também pelo menos dois grupos de fotógrafos  profissionais fazendo coisas para publicidade de moda, pelo que percebi; e um trupe registrando as palhaçadas e discursos dos performistas daquele já cidade apartamento –estes, eu fotografei também.


Sempre me emociono quando chego à curva do elevado que me permite ver o centrão lá longe, o prédio do ex-Banespa, um dos símbolos paulistanos. 

O elevado também é privilegiado ponto de observação sobre as mazelas da cidade, as favelas que se formam no seu entorno, os molambos humanos que lá circulam...

Dá dó e dor, mas há que seguir.

Cheguei ao centrão e me dei conta de que o feriado do dia tinha motivos religiosos. Várias igrejas tradicionais colocaram um altar na porta, com religiosos ou laicos por ali chamando o povo para as orações. Numa delas, na Santa Ifigênia, esse coral todo vestido de azul era o chamariz.



Mais para a frente, no largo de São Bento, os monges esperavam uma enorme procissão, que tomou rua e calçadas da região central, dificultando a jornada de um certo corredor aposentado.



Como eu estava devagar mesmo, não me incomodei muito. Cada um com seu cada qual.

Sem cantorias, outro grupo se concentrava ali pelo centrão, nas ruas selecionadas para os pedestres. Estavam em fila enorme, que serpenteava por vários quarteirões, aguardando a hora de apreciar a exposição de obras de Picasso, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. Quem disse que nosso povo não gosta de cultura?

Fiz minha tradicional volta em torno da praça de Sé e desci a rampa para chegar ao pé da subida que almejava: a Brigadeiro.

Trata-se da avenida Brigadeiro Luiz Antonio, que é um dos trechos mais temidos e aguardados na principal e mais tradicional corrida de rua do Brasil, a São Silvestre. São quase dois quilômetros lomba acima, onde a prova costuma ser decidida.

Já lá se vão quase dois desde a última vez que subi aquela ladeira. Foi na São Silvestre de 2013, e não pude correr. Estava com uma fratura por estresse no alto da tíbia direita, logo ali onde ela se encontra com a rótula. Mesmo assim, não modifiquei em nada meus planos de percorrer 460 quilômetros por São Paulo em homenagem às comemorações que a cidade faria em 2014.

A São Silvestre foi parte do percurso, e a história daquela corrida vocêpode ler AQUI.

Nesta quinta-feira, tudo que eu queria era ser capaz de subir sem caminhar. Não queria parar, não queria diminuir o ritmo, não queria me refrescar nem fazer nenhuma pausa, ainda que por breves segundos.

Segui então direto, direito e reto morro acima. 

Engatei um ritmo que me pareceu adequado e fui em frente, depois de mais de 13 quilômetros já percorridos pela cidade.

Foi um momento de lembrar do processo de treinamento e me maravilhar com a capacidade do corpo humano. Poucos meses atrás, em outubro ou novembro, eu mal conseguia correr um quilômetro sem parar. TODOS, absolutamente todos os meus treinos incluíam longos trechos de caminhada e NADA, absolutamente nada, de subidas.

Por meses, a quilometragem semanal mal chegava aos 20 quilômetros. Mesmo assim, sofria com dores. Não raro, tive de suspender treinos por causa de um joelho chateado, um pé bambo, costas arrebentadas, quadril interrompido, falta de  ânimo ou simplesmente saco cheio.

Hoje, não. Subi sem parar, olhando a fieira de teatros da parte baixa da Brigadeiro, me divertindo em imaginar a Paulista cheia de gente para saudar os corredores na São Silvestre. E cheguei ao topo sem parar, sem interromper, sem dor.

Quando eu digo sem dor, estou falando daquelas malditas, que atrapalham e apavoram. Dores, sempre as tenho. Atualmente, por exemplo, uma pontada fina perturba a lateral de meu joelho. Gelo nela!, é o que eu digo, e vou em frente.

O certo é que estou mais inteiro, pelo menos agora. 

O equilíbrio é desequilibrado, como sempre. A instabilidade é a marca registrada, mas, pelo menos agora, ela não me apavora.


Meu caminho para a Maratona do Alasca passa pelas ruas de São Paulo.

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