11.5.15

Na terra da maçã, aposentado vive o prazer e a dor de correr na serra

Eu estava no quilômetro seis quando ouvi o toque dos sinos. O som me tirou de uma espécie de torpor em que eu estava metido, um pouco pelo cansaço, outro tanto por algumas dores, mais um pedaço pela solidão que me dominava no caminho.

Levantei a cabeça do asfalto encabritado que me levaria até o centro de Lajeadinho, um lugarejo na serra gaúcha, o ponto exato onde foi plantada a primeira macieira que vicejou em terras brasileiras, já lá se vão 80 anos completados neste 2015.
Os sinos bimbalhavam na torre da capelinha azul e branco fundada em 1901 e reconstruída em 1949, homenagem à Nossa Senhora do Monte Bérico (fotos Eleonora de Lucena). 

Eu respeito as crendices de fábulas de todos quanto acreditam nelas, por isso explico aqui quem foi essa Madona: trata-se de uma aparição ocorrida na vila italiana de Monte Bérico em 1426, quando a peste castigava a região.

Não me estendo mais, mas curiosos e crentes podem se informar com detalhes sobre os atos milagrosos clicando AQUI.

Para mim, não ouve milagre nenhum. Ao ouvir aquele som, só me lembrei de uma frase: “Não perguntes por quem os sinos dobram”. 

Ela é citada no livro de Hemingway que aborda os terríveis acontecimentos da Guerra Civil Espanhola, prévia dos monumentais enfrentamentos da Segunda Guerra Mundial. E tem um desdobramento, corolário, resposta à pergunta que não deve ser feita: “Eles dobram por ti”.

Ali, me sentia morrendo e me reconstruí, recomecei, pensando que em breve chegaria ao quilômetro sete e meio, onde haveria água fresca e onde eu poderia tomar um sachê de carboidrato, o que me ajudaria muito a chegar ao final daquela prova de dez quilômetros.

No meio da alegria da retomada, também senti uma certa depressão: depois de trocentas maratonas no lombo, estava ali sofrendo para completar um dezinho...

Acontece que não é assim que funciona. O fato é que as lesões e o tempo de treinos curtos e aperiódicos que vivi antes de iniciar esta empreitada cobraram sua parte. Tenho de reaprender a correr e a aguentar o asfalto. E estou fazendo isso.

A corrida em Veranópolis –município onde fica Lajeadinho—não era de meros dez quilômetros. De fato, era a segunda etapa de uma meia maratona que nunca fora feita. Eu planejara correr os 21 km em março, em Israel, mas não tive condições (saiba mais clicando AQUI).



Então, com orientação de meu treinador, Alexandre Blass, mudamos o projeto: em abril, faria duas provas de 10 km, uma em cima da outra, lá nas terras gaúchas. Era uma forma de testar a resistência do corpo sem impor um volume inesperado...

Na noite de sábado, fiz uma gostosíssima prova na orla do Guaíba, em Porto Alegre. Reunimos Reckziegels e Lucenas que correm, mais agregados de toda a sorte, e cada um fez sua prova, no sue ritmo, para festejar depois. Uma coisa família, assim, gostosa que só ela, tendo como troféu um churrasco noturno e longas conversas da parentada.

Na madrugada seguinte, o despertar foi dolorido, às 5h, para pegar quase três horas de estrada de Porto Alegre a Veranópolis, para a tal segunda etapa da meia maratona.

Valeu a pena.

O mote da corrida era a Festa da Maçã, pois o município se orgulha de ser o pioneiro no Brasil no plantio dessa fruta. A se acreditar nos registros, tudo se deu da seguinte forma.

Nos idos de 1935, o agricultor José Bin, então com 37 anos, comprou uma maçã no mercadinho Zanchetta, em Veranópolis. Levou para casa o fruto importado da Califórnia e, com um afiado canivete, repartiu a maçã, dando um pedacinho a cada um de seus 14 filhos (tinham sido 18, mas quatro não resistiram aos primeiros dias de vida).

Todos gostaram tanto que ele resolveu experimentar com as sementes, fazendo um plantio nos fundos da casa simples em que a família morava, no fim de uma picada no interior do interior de Lajeadinho. Três pés nasceram, mas só uma vingou mesmo.

E como: teve safra em que aquela árvore pioneira chegou a dar mil frutos. E a nova mação brasileira ganhou cepa e nome próprio, homenagem a José Bin –esse tipo de maçã está hoje quase extinto, mas ainda aparece em feiras e exposições como a de Veranópolis.

Eis a razão e o por quê da estarmos ali uns 80 e poucos corredores, no frio da manhã serrana, esperando a hora da largada. Eu trazia no peito o número quatro, indicação de que era o quarto mais velho na corrida. 



Antes da partida, encontrei ainda o 1 e o 2; buscamos o 3 para uma foto do quarteto velhusco, mas foi em vão; ao final, porém, conseguimos reunir outra trupe de veteranos...

Quando enfim deu-se a largada, todos se foram e a mim parecia que eu tinha ficado. Não, era só impressão: eu simplesmente era o mais lento de todos, o último dos últimos já na partida.


Por alguns metros, acompanhei de perto os corredores que fechavam o cortejo; aos poucos, porém, eles foram se afastando enquanto galgávamos a primeira das muitas subidas do percurso.


Passados 500 metros, eu já sabia que não teria coelho para me puxar nem poderia me incentivar dizendo que iria em perseguição deste ou daquele colega de infortúnio. Tive de mudar o meu espírito, tentar entender por que estava correndo ali, o que eu poderia tirar de bom do fato de ser o último, correndo sozinho.

Quase sozinho: atrás de mim vinha a ambulância com seu ronronar protetor. Diferentemente do que acontece com ônibus-prego em algumas provas, os caras ficaram na deles, se aguentando no meu ritmozinho, sem roncar motor nem oferecer nada, numa boa.


Por isso, agradeço a gentileza da companhia distante do motorista Admir Bussolotto (mais alto), da técnica de enfermagem Marta Vieira e do enfermeiro Fábio Motta.

Eu sabia que eles estava lá atrás, mas esperava não precisar deles. Queria mais era (re)aprender a correr sozinho, saber manter um ritmo mesmo sem ter ninguém a quem perseguir, não entregar os pontos mesmo quando não havia ninguém olhando para aplaudir minha bravura.


Era só eu, o asfalto, as montanhas ao longe, a vista sensacional –tive de parar uma vez, por alguns segundos, para fazer uma foto. E as dores musculares, que nem eram tão fortes assim.

O que mais aparecia era o cansaço, e uma maldita preguiça me dizendo para afrouxar. Quando os sinos tocaram, guardei tudo num canto qualquer do cérebro e acordei para o trecho que faltava.

Estende as pernas, amplia a passada, encurta a passada, levanta o tronco, olha 
para o mundo, pensa na maratona –e que maratona, o Alasca me espera!. Vou embora, correndo sozinho, curtindo a montanha, o cheiro de interior, o clima da serra.


Chego melhor do que saí. Cumpri a meia maratona de um jeito heterodoxo, mas bem feito –uma em 1h07, outra em 1h08, melhor do que nada.

Sem dores profundas, e com a serena sensação de que vou conseguir prosseguir no treinamento. Se conquistarei a maratona, não posso saber nem prometer, mas que leva jeito, ah isso leva.

Comi maçã e, enquanto vasculhava as belezas de Lajeadinho, ouvi meu nome ser anunciado.


Fui o quarto lugar na minha categoria --que ninguém se lembre de que também éramos apenas quatro os cinquentões quase sessentões. E me saí com medalha e medalhão.

Que beleza!



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