30.3.15

Velhinhos de Limeira dão exemplo de velocidade e resistência

Hoje trago para você uma história muito bacana, que mostra a tenacidade dos corredores mais velhos. Trata-se das aventuras da turma de Limeira, no interior de São Paulo, onde um grupo de veteranos mantém acesa a chama do esporte, inspirando e mobilizando gente muito mais jovem.

Até dois meses atrás, quando lancei este blog, nunca tinha ouvido falar desse grupo.Quem chamou minha atenção para os masters de Limeira foi a jornalista Daíza Lacerda, uma jovem de 30 anos que está se iniciando nas artes da corrida –orientada por um veterano que tem mais que o dobro de sua idade, o Fumaça (olhaí os dois na foto/Arquivo Pessoal).

Pois a Daíza mandou para mim uma simpática cartinha eletrônica me convidando para conhecer a turma e participar das corridas que organizam na cidade. E falou também dos problemas que enfrentam: a cidade perdeu há pouco sua principal pista de atletismo, por causa de obras para contenção de enchentes. Os treinos são feitos numa pista nova, improvisada, mas a turma não dá o braço a torcer.

Conversa vai, conversa vem, foi a minha vez de fazer o convite, chamando a Daíza para uma colaboração para o blog, deixando que ela mesma contasse a história dos seus companheiros de treinos e inspiradores para a corrida.

Ela gentilmente aceitou e acabou mandando o texto que publico a seguir; também mandou uma batelada de fotos. Infelizmente, não dá para publicar todas. Espero que as imagens que escolhi já sirvam para você conhecer melhor essa sensacional turma de corredores que enfrentam o tempo e as adversidades em nome da saúde e do prazer de correr.

Bueno, fique agora com o texto da DAÍZA LACERDA, a quem mais uma vez agradeço pela contribuição.




VETERANOS DE LIMEIRA PERDEM A PISTA, MAS NÃO A POSE

Para eles, a idade parece quase um detalhe. Circulando com suas rugas, cabelos brancos e peles flácidas, parte dos vovôs e vovós de Limeira quer saber mesmo é de correr. Nas trilhas com pedra e areia fofa do Horto Florestal de Limeira, eles não perdem o riso e nem a competitividade. Do alto dos seus 60, 70 ou quase 80 anos de idade, começam cada ano com uma nova medalha na coleção.

Com recorde de 230 inscritos, o Campeonato Municipal de Pedestrianismo de Limeira está sendo realizado pelo 22º ano consecutivo, atraindo cada vez mais velhinhos para as corridas gratuitas que acontecem mensalmente em distintos bairros.

Para quem não para de correr, é o termômetro do poder de fogo das canelas, em evento organizado de forma artesanal: fichinhas feitas à mão, que faz às vezes do chip, e linha de chegada delimitada por um barbante, o funil. Mas tem suquinho na chegada, lanche comunitário e sorteio de camisetas para quem participa.

Há também enfrentamentos com a turma dos veteranos da região, que participam do Campeonato Máster do Interior. Não é proibido para menores (até 34 anos), que podem se meter a besta, sem pontuação para equipes. Mas os novinhos têm de ser humildes e se sujeitarem a engolir poeira da véiarada, um bando de homens e mulheres inspiradores. Afinal, o máster é disputa de verdade para nervos e músculos lapidados em anos e quilômetros sem fim de asfalto ou terra, sem páreo para ratos de academia.

DE REPENTE, 72

Essa história toda começou com o Fumaça, que alguns até conhecem como José Carlos da Silva. Aos 72 anos, ele também não larga o osso. Está há meses na lida com “uns probleminhas” no nervo ciático, que deve deixá-lo de molho por outros meses. Mas a aposentadoria não está nos seus planos. Reduzir, sim. Parar, jamais. Está firme e forte no propósito de participar dos Jogos Regionais do Idoso (Jori) e Jogos Abertos do Interior deste ano, e faz planos para quando mudar de categoria.



Figura lendária no atletismo de Limeira e região, Fumaça corre desde os 18 anos, quando trocou o futebol (que lhe rendeu o apelido) pelas pistas. É da época em que o município sequer tinha local para reunir a dúzia de corredores que estavam perdidos por aí. Ele calcula cerca de 500 troféus e outras 500 medalhas no gigante histórico de competições.

A mais recente é a melhor colocação do Estado nos Jogos Abertos do Interior de 2014. Trouxe para Limeira o ouro nos mil metros, vencidos em 3min42 em sua categoria. “Ainda dou trabalho para eles!”, celebra. De todas as premiações, acredita que pelo menos umas 50 vieram depois dos 60 anos.

Sem aviso, a idade chegou na vida corrida. “De tanto que corri, nem percebi. Não parei. De repente, estou com 72”, conta, paciente, em meio a inúmeras interrupções de atletas ou colegas de trabalho que insistem em lhe consultar, ora sobre as próximas provas, ora sobre a parte burocrática da Associação Limeirense de Atletismo (ALA), da qual é treinador.

Fumaça conta que a idade não lhe trouxe muitos problemas de saúde, o que credita à vida de treinos. Para ele e para os pupilos entre 10 e 80 anos. Trata a fisgada no ciático como algo pontual, provavelmente adquirido em outras atividades que não a corrida. “É claro que a corrida também caleja. Mas essa dor não desejo para ninguém. É uma das piores, mexe com tudo. Mas agradeço aos médicos que estão me ajudando”.

Ele dá bronca na terceira idade. “Não tem nada que esperar a aposentadoria para iniciar no esporte. Ficar só no dominó, esperando o infarto, ou só começar quando o médico mandar”, prega ele, sobre a vontade que deve prevalecer à necessidade.

No campeonato municipal, as cabeças brancas (ou tingidas) são mais numerosas nos últimos cinco anos, como ele calcula. E a necessidade de o município ter um time de velhinhos para representação no Jori contribuiu para que uma parcela deixasse, de fato, o dominó de lado para correr. Praticar o esporte é bom. Mas a coisa muda quando há disputa pelo pódio.

“Na pista, a pessoa tem a chance de andar, parar, sentar. Sem a responsabilidade de participar, vai bem. Colocou responsabilidade, daí pesa. Não é fácil carregar 300 habitantes nas costas, nas competições”.

A contragosto, reconhece a necessidade de aliviar o passo. “Tem que controlar, aprender a dosar. Quando eu chegar nos 75, vou correr 800 metros. Aí vou pegar uns velhinhos mais fracos”, planeja.


UM LUGAR PARA CHAMAR DE NOSSO

A história de Fumaça se mistura com a da pista de atletismo de Limeira. O traçado oval de 300 metros com pedriscos, recheado com grama, foi inaugurado em 1967. Desde agosto é uma cratera cheia de barro, concreto, máquinas e homens, que constroem ali um piscinão para conter a água da chuva e evitar enchentes naquela e outras regiões.

O projeto existe há uma década e saiu do papel em convênio de R$ 25 milhões com o governo federal. O plano é devolver a pista nas mesmas condições de treino de antes da obra, que deve ser concluída em dois anos. Mas já houve atrasos devido à lentidão do governo em liberar a verba para continuidade dos trabalhos.

Para quem esteve ali desde sempre, a despedida não foi fácil. "Vi jogarem a primeira grama no campo. Acompanhei os tratores passando, as minas d'água. Presenciei a construção dos alicerces das arquibancadas. Depois, treinavam velho, novo, gordo, magro, branco, preto. Só não podia fumar, jogar bola, e levar cachorro e papagaio”, conta Fumaça sobre a antiga casa, frequentada não só pelos atletas da ALA, mas alunos de academias e anônimos em geral, usando o local para garantir um passo à frente do sedentarismo.

Na defesa da corrida como base para qualquer esporte, a agenda de disputas se misturou com o trabalho desenvolvido na pista que nascia, e ele não competiu na estreia. Mas competiu em outras, ou mandou “seus meninos” disputarem – e ganharem – por ele. A pista já não era apta a receber jogos abertos ou regionais, devido às exigências "a nível de seleção".

As oficiais têm de ter 400 metros, com piso de tartan, uma espécie de borracha, e não de carvão, como a pista limeirense. "Mas já vi algumas de tartan piores que a nossa de carvão", alfineta o treinador.

A casa nova e provisória fica próxima da antiga, em área pública que passou por adequações para receber os atletas, que agora são desafiados com subida e descida em mais de 400 metros do traçado oval. É a topografia do local onde não foi possível mexer, resultando numa pista com desníveis. Mas isso não foi problema, considerando o lado masoquista dos usuários. O que dizem é que a subida desafiadora de hoje vai calhar com tempos melhores quando a velha pista for retomada.

Fumaça lembra que os poucos atletas da época da construção treinavam na rua. Mas a pista própria do município fomentou o esporte, com a criação de escolinha para crianças. Com o crescente número de atletas, faltava uma identidade.

m 1991, os praticantes se organizaram em grupo e criaram a Associação Limeirense de Atletismo (ALA), que tem sede na pista. "Daí para frente, formamos muitos campeões, como o Odair dos Santos, paralímpico que começou conosco. Doutores, industriários e engenheiros da cidade passaram por aqui. E a população tem que aproveitar o que tem".


O MÁSTER CHEGA AOS 30

Limeira tem outra figura jurássica das corridas. E ela é sempre vista por aí com um chapeuzinho, carregando pastas, a pé ou de bicicleta. De cabelos muito brancos e olhos bem azuis, seu Rui Camargo é idealizador, junto com Fumaça, do Campeonato Máster do Interior, que completa 30 anos em 2015.

À frente da Camal (Corredores Amigos Másters do Atletismo de Limeira), seu Rui gosta de exatidão nos números. Tem 77 anos de idade, 390 medalhas, 101 troféus e 753 corridas concluídas. Aliás, 754 corridas e 391 medalhas, considerando o pódio da abertura do campeonato municipal.



Para desespero da esposa, não enche os cômodos da casa só com as medalhas e troféus, mas com cadernos e mais cadernos de anotações de suas competições e do máster. Dita que, em 2014, foram 39 participantes acima de 60 anos, 29 com mais de 65, 18 acima dos 70, nove que passaram a linha dos 75 e um que representa os 80+.

Se lá nos anos 1980 a idade média dos participantes era 40 anos, na última década explodiu a invasão dos aposentados. Nos aquecimentos, atividades da terceira idade e o orgulho dos netos são assuntos. Na hora da prova, fim de papo e o bicho pega entre os concorrentes, a maioria correndo por equipes independentes ou vinculados aos departamentos de esporte de municípios.

Nos mesmos moldes artesanais do “filhote” municipal, o pega pra capar regional deste ano já tem data e local: 29 de março, às 8h, com largada e chegada na pista da ALA em Limeira (Rua Capitão Antonio Esteves dos Santos, Jardim Piratininga, ao lado da Câmara Municipal). Com expectativa de 200 participantes no campeonato, durante o ano, as outras cidades da liga sediarão outras etapas: Cordeirópolis, Jundiaí, Cajamar, Sumaré, Mogi Mirim, Mogi Guaçu e Campinas.

O ÚLTIMO GOLE
Corredor e organizador de corridas, seu Rui era refém da bebida no início dos anos 1960. Trocou os copos pelas ruas numa data marcante para ele: 1º de maio de 1962, sua estreia na Corrida do Trabalhador. Não parou mais e garante que nunca precisou de médicos na trajetória, sem histórico de lesões. Ou quase. A esposa o desmente e entrega, contando o dia que o marido chegou com o rosto sangrando, após um tropeço num treino. Nada além de um susto. Ou, azar, nas palavras dele.

Mas seu Rui tem exemplos para não abusar. Já viu dois colegas idosos morrendo em meia maratona, nos últimos cinco anos. Os dois casos ocorreram em Campinas, e os atletas não alcançaram a linha de chegada, tomados por ataques cardíacos no percurso.

“Na época, pressionamos para que não participassem, mas insistiram. Assinaram um termo de responsabilidade e mesmo assim deu problema depois”, lembra. “Se passou dos 60, não adianta querer o ritmo de quem tem 30 ou 40. Tem de se conhecer. O corpo avisa dos limites”, alerta ele. Embora muitos de 60+ passem brincando pelos de 30+, como já testemunhei.

A SÃO SILVESTRE MORREU

Quando seu Rui começa a relembrar das corridas das antigas, pergunto da São Silvestre e recebo uma avalanche de fúria. “Não existe mais São Silvestre. É corrida para 10 pessoas, cinco homens e cinco mulheres. O resto é figurante”. Instantaneamente perco o riso, sendo que me esforcei no ano passado para ser uma “figurante”. Depois é que entendo suas razões.

“Corri quatro vezes a São Silvestre, quando havia eliminatórias no interior para poder participar. O Fumaça, em 1966, ficou na 31ª colocação geral, foi o 1º do interior e 11º brasileiro. Participavam no máximo 460 pessoas, era tudo gratuito. Eram premiados os melhores do interior e do Estado, além dos estrangeiros.

Naquele ano foram 34 países”. Para comprovar o passado perdido, saca edições da Gazeta Esportiva e outros jornais com notícias das eliminatórias e as classificações. Ele e Fumaça são identificados em fotos, além de outros atletas da região.



Crítico ferrenho do modelo atual de corridas de “ostentação”, seu Rui queria mesmo é protestar contra o esporte como comércio. Mas ele mesmo reconhece que é “bater em ferro frio”. Ainda que para ele o modelo certo seja o das antigas, as ilusões também ficaram lá atrás.

“A corrida é uma distração, não é cara. É melhor do que passar o dia inteiro no sofá em frente da TV ou no computador. Enquanto eu tiver saúde, corro. Senão, caminho. Corro para manter a forma, sem a ilusão de ganhar. Antes, partia pra cima. Agora, se alguém me passa, deixo que vá”.



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